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Crítica | Os Devoradores de Vidas

por Daniel Tristao
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O envolvimento dos nazistas com misticismo e ocultismo sempre foi um assunto gerador de bastante curiosidade por parte do público em geral. Não à toa, já serviu como tema em diversas obras da literatura, televisão, quadrinhos e cinema, como Hellboy, Os Caçadores da Arca Perdida e O Ocultismo Nazista (este último uma minissérie de 2017 do Discovery Channel). E é este o contexto que o escritor David Brin decide abordar em Os Devoradores de Vidas. Nesta graphic novel os nazistas utilizam necromancia para invocar os deuses nórdicos (Aesires) e usá-los como uma mortífera ferramenta para vencer a guerra. E eles conseguem! A história começa em 1962, dentro de um submarino que participa de uma desesperada investida da resistência dos Aliados, já alquebrados e com poucas esperanças de reverter a situação.

Já no primeiro capítulo (de três ao todo), sabemos que Loki, o deus nórdico da trapaça, mudou de lado há alguns anos e desde então tem apoiado os americanos. Sua real motivação é misteriosa, assim como a identidade do narrador, que vemos ainda na primeira página, no que parece ser um futuro indeterminado em ruínas. O capítulo inicial nos conta muito sobre os rumos da guerra após a chagada dos deuses, em 1944. Os Aliados consideravam a guerra bem encaminhada, apesar de terem ainda grandes desafios pela frente, mas com perspectivas otimistas. Era um pequeno vislumbre da nossa realidade que acabou não se confirmando, já que foi justamente no Dia D que os Aesires entraram no conflito ao lado dos alemães. Neste ponto o roteiro é bem detalhado e se divide em duas frentes: as mudanças de rumo da guerra, desde 1944, que levaram a história ao ponto atual, em 1962; e também em Chris Turing, no presente, um ex-membro da SS que se uniu ao exército americano quando percebeu que estava do lado errado da guerra.

Provavelmente por causa da quantidade de informações que Brin precisa explicar ao leitor neste primeiro capítulo, a dupla criativa opta por uma diagramação de página com poucos quadros, preenchidos com bastante texto em terceira pessoa. Os desenhos de Scott Hampton, em alguns momentos, lembram mais os de um livro ilustrado do que os de uma história em quadrinhos, pois se limitam a retratar certos acontecimentos citados no texto, não colaborando de forma dinâmica com uma narrativa gráfica eficiente. Além disso (ou talvez justamente por isso), falta fluidez ao texto, o que torna a experiência de leitura um pouco mais arrastada do que o normal. Tal característica aparece em outros momentos pontuais no segundo e terceiro capítulos, mas não com a mesma predominância que existe no primeiro. No entanto, ainda neste capítulo inicial, Brin começa a revelar alguns mistérios da trama e o leitor é impelido pela curiosidade.

Já no segundo capítulo, com todo o panorama devidamente estabelecido, o ritmo de leitura melhora. Porém, logo percebemos que Chris não era de fato o protagonista da história, e sim um personagem cuja trajetória serve como degrau para o estágio seguinte da trama. O interessante é que muitas respostas foram dadas anteriormente, novas dúvidas surgem e a história cresce de uma forma imprevisível. Como se combate uma força militar que invoca deuses para apoiá-la na guerra? Invocando outras divindades para lutarem ao seu lado, e é isso o que os Aliados fazem. A guerra não mais ocorre só na Europa, se espalhando também pelas Américas, Ásia e África, tornando o conflito literalmente mundial.

Os deuses Xintoístas são agora aliados dos Aesires, formando uma aliança de divindades de clima frio; do outro lado estão as divindades de clima quente: mitos e entidades asiáticas e africanas, juntamente com outros “restolhos tropicais” (como a tradução nacional definiu o termo tropical frothings), formam uma coalizão com os Aliados. Desta forma, a situação evolui para um conflito climático, no qual deuses de ambos os lados tentam causar desastres ambientais com o intuito de obter vantagem contra seus inimigos. Ou seja, de qualquer forma, quem sai perdendo são os humanos, que começaram uma guerra da qual são agora meros coadjuvantes, inclusive os nazistas.

O tratamento que o texto dá às divindades de outras partes do mundo é, no mínimo, descuidado. Os únicos deuses identificáveis pelos nomes, em toda a obra, são os Aesires (e limitados a Odin, Thor e Loki); todos os outros são referenciados (uma só vez) por termos genéricos como Xintoístas, mitos asiáticos, divindades africanas ou ainda, “restolhos tropicais”. Talvez David Brin nem tenha tido má intenção, mas o fato é que se passa a ideia de subestimação de outras culturas; não que os Aesires não possam ser os mais fortes no universo criado pelo autor, podem sim, mas precisa haver um desenvolvimento igual de ambas as partes para se chegar a esta conclusão, ou ao menos uma explicação para tal. Da forma como ficou, há a impressão de uma guerra de um lado só. Uma pena, mas faltou imaginação e bom senso neste ponto, até para explorar possibilidades mais ousadas para o roteiro. Até bateu uma saudade de Sandman durante a leitura…

Voltando à trama, a esta altura já há muitos elementos sendo trabalhados e diversas possibilidades para a evolução da história. Porém, não satisfeito, Brin ainda insere soluções e estratagemas que envolvem a real motivação para os campos de concentração nazistas, os satélites que orbitam o planeta, o importante papel desempenhado pelos Abramitas (os membros de religiões abraâmicas, como judaísmo e islamismo, por exemplo), Yggdrasil e o meteorologista Joseph Kasting. Apesar da aparente salada e do mal aproveitamento de alguns desses elementos, o leitor não se perde, a trama é interessante e há uma considerável expectativa quanto ao seu final.

E sobre o final da história, interpreto de duas formas diferentes, nenhuma delas boa o suficiente em vista do potencial inexplorado da trama. Uma é mais próxima da visão do autor, que se contenta em dizer quem vence a guerra, mas sem dizer como, colocando em primeiro plano uma lição de moral na qual a humanidade não comete o mesmo erro de relegar o seu destino aos desmandos de entidades superpoderosas. É na verdade uma conclusão um tanto conformista, apoiada numa lição importante, porém enfraquecida perante um final abrupto. A outra é mais pragmática (e talvez por isso mais frustrante), pois deixa a forte sensação de que o autor construiu uma trama tão mirabolante e complexa, que nem ele mesmo encontrou uma forma coerente de resolução. Assim, ficou mais fácil somente revelar o lado vitorioso, dando a entender que as consequências foram trágicas para a humanidade, mas sem revelar a forma como se deu.

Os Devoradores de Vidas é o primeiro trabalho autoral de David Brin nos quadrinhos, sendo também apenas sua segunda empreitada neste formato (a primeira foi Forgiveness, uma história baseada no universo de Star Trek). Apesar de ser um autor de literatura de ficção científica já com uma boa bagagem e prêmios importantes, talvez a sua falta de intimidade com a banda desenhada tenha contribuído para a falta de consistência da obra.

Olhando o cenário como um todo, com texto inerte, alguns personagens pouco desenvolvidos, ideias mal exploradas e conclusão fraca, tem-se a impressão de que a obra toda parece mais uma ideia embrionária (com excelente premissa, ótimos conceitos para serem ainda desenvolvidos e cheia de potencial) do que uma graphic novel bem-acabada. Além disso, acredito que dois capítulos adicionais fariam bem para um melhor desenvolvimento da trama: um no começo, para costurar com mais calma o cenário da guerra e as mudanças ocasionadas pelos Aesires (o que inclusive favoreceria os desenhos de Scott Hampton); e outro no final, para a construção de uma conclusão mais bem estruturada ou ao menos sem a aceleração que presenciamos no terceiro capítulo. Talvez em outras mãos, Os Devoradores de Vidas poderia ter sido um enorme sucesso.

Os Devoradores de Vidas (The Life Eaters) — EUA, 2003
Publicação original: Wildstorm
No Brasil: Mythos, 2018
Roteiro: David Brin
Arte: Scott Hampton
Cores: Scott Hampton
Letras: Todd Klein
Editoria: Jeff Mariotte, Scott Dunbier, Kristy Quinn
144 páginas

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