I can always go through life sideways.
– Marsh, Debby
Sydney Boehm, que escreveu o roteiro de Os Corruptos baseado em obra publicada em folhetim por William P. McGivern, não inventou o filme sobre vingança e nem mesmo o filme sobre o policial incorruptível que sofre as consequências por investigar o que não deveria investigar, mas o texto de seu trabalho aqui é absolutamente impecável. E, como se isso não bastasse, Fritz Lang pega o material e cria o que eu poderia muito facilmente afirmar que é a obra audiovisual prototípica a partir da premissa que mencionei, com nada, nenhum quadro, nenhum close-up, nenhum figurino fora de lugar. É como assistir o desenrolar da história perfeita, uma de várias provas de que o filme feito puramente para entreter pode ser sim fora de série.
Os Corruptos é completamente previsível, com o espectador moderno, tenho certeza, sendo capaz de acertar, sem esforço, cada um dos desenvolvimentos da narrativa e cada fim de personagem e, tenho mais certeza ainda, que mesmo o espectador dos anos 50 seria capaz do mesmo feito. Mas essa é mágica do longa de Lang, que, como disse, consegue passar a impressão de ser o criador de cada clichê utilizado, do policial de reputação ilibada que se mete em uma enrascada terrível por não saber parar e por ser inocente demais, passando pela femme fatale de conduta dúbia, aqui inclusive representada fisicamente, chegando às sequências climáticas de ação que encerram a fita em cirúrgicos 90 minutos.
Mais um filme noir do diretor, a direção de fotografia do mítico Charles Lang (nenhum parentesco com Fritz), conhecido como um dos mais bem vestidos de Hollywood e por ter domínio absoluto de seu ofício, transicionando muito tranquilamente para o neo-realismo que marcou os anos 50, é outra chave para o funcionamento invejável de Os Corruptos. No lugar de trabalhar o chiaroscuro como contrastes absolutos, ele suaviza a sensação antitética das cores e cria uma ambientação sutil e, diria, natural, que faz com que os diversos ambientes, seja a humilde casa do detetive Dave Bannion (Glenn Ford) ou a luxuosa mansão do mafioso Mike Lagana (Alexander Scourby), conversarem de maneira elegante, sem que cada um, claro, tenha sua assinatura visual própria.
E, mais uma vez, Lang (o Fritz) acerta em cheio na escalação e aproveitamento de seu elenco. Ford tem enorme presença em tela, algo que o diretor sabe usar a cada tomada que foca em seu rosto cada vez mais consternado na luta inglória que trava, com Gloria Grahame como a aparentemente boba Debby Marsh, namorada troféu do capanga Vince Stone (Lee Marvin), ganhando cada vez mais destaque ao longo do desenvolvimento da narrativa, ao ponto de ela por vezes até mesmo deixar seu colega de profissão no chinelo. Claro que o próprio Marvin, como o violento segundo em comando de Lagana, comanda atenção também, mas de uma maneira sempre ameaçadora, com Lang trabalhando sua presença como a força motriz de grande parte da surpreendentemente gráfica violência da fita, especialmente em relação às mulheres, o que somente funciona para transformar o clímax e o papel de Grahame nele em algo particularmente satisfatório.
Desde os segundos iniciais da fita, com o suicídio de um policial com sua esposa reagindo friamente e imediatamente ligando para Lagana, Os Corruptos prende a atenção do espectador, mas não exatamente pelo mistério que cria, que é muito bom, não se enganem, mas sim pela pura força das imagens dos Langs trabalhando em conjunto, com as presenças primeiro de Ford e, depois, de Grahame e de Marvin, funcionando como juros compostos ao enriquecera obra exponencialmente e tornando impossível a tarefa de sequer desviar os olhos da fita por um segundo que seja. E isso mesmo considerando que o filme é, sequência por sequência, absolutamente familiar, o tempo todo trabalhando algo que já esperamos ou já sabemos e mesmo assim deslumbrando por não ter um casaco de vison fora do lugar onde deveria estar e nenhuma frase sem contexto ou com palavras de mais ou de menos ou sem um fotograma a mais ou a menos de violência explícita que deveria ter.
Não há complexidade narrativa em Os Corruptos, nenhum grande subtexto crítico para além do óbvio, mas Fritz Lang tece uma tapeçaria elegante e inebriante que lapida o roteiro de Boehm e coloca um perfeito diamante de entretenimento na telona, uma obra que consolida os tropos que vieram antes em um conjunto preciso que se tornou, ela própria, um tropo a ser repetido por décadas a fio e até hoje em dia, com muito poucas conseguindo chegar no mesmo nível. Como costumo dizer, puro entretenimento e alta qualidade não são – e nunca deveriam ser – características excludentes e Os Corruptos está aí para provar exatamente isso.
Os Corruptos (The Big Heat – EUA, 1953)
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Sydney Boehm (baseado em obra de William P. McGivern)
Elenco: Glenn Ford, Gloria Grahame, Jocelyn Brando, Alexander Scourby, Lee Marvin, Jeanette Nolan, Peter Whitney, Willis Bouchey, Robert Burton, Adam Williams, Howard Wendell
Duração: 90 min.