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Crítica | Os Caçadores da Arca Perdida

por Ritter Fan
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O que escrever sobre Os Caçadores da Arca Perdida? Acho que nunca ouvi ninguém falar mal deste filme e, com o universo inteiro apreciando a primeira aventura cinematográfica de Indiana Jones, fiquei imaginando o que poderia escrever sobre o filme que não fosse simplesmente chover no molhado. Afinal, assim como todo mundo que conheço direta ou indiretamente, não tenho reservas em simples adorar esta criação maravilhosa de George Lucas e Steven Spielberg, um filme que encapsula com perfeição e mais do que qualquer outro o gênero Aventura.

Foi então que, pesquisando, decidi por um “duelo de titãs”. Os dois maiores críticos americanos de cinema americanos, Pauline Kael e Roger Ebert, tiveram posições diametralmente opostas sobre Caçadores quando de seu lançamento, com Ebert ainda tendo oportunidade, como era seu costume, revisitar as obras mais importantes e suas próprias críticas, para atualizá-las sempre que achava necessário. Assim, partindo do estabelecimento destes dois entendimentos antagônicos, costurei meus comentários (leiam a crítica de Pauline Kael aqui e a crítica atulizada de Roger Ebert aqui – ambas em inglês).

Para quem porventura não conhecer, Kael foi uma das mais profícuas críticas cinematográficas que já viveu, tendo longa e interessantíssima passagem pela importante revista The New Yorker. Extremamente consciente da arte de fazer cinema e conhecedora ímpar de uma enorme gama de filmes, a autora foi uma das primeiras críticas a decompor a pomposidade da chamada crítica especializada, escrevendo de maneira mais simples, mais humana, mas sem perder a qualidade. Ela atacou firmemente o raciocínio vigente à sua época (ela nasceu em 1919 e começou a escrever críticas da década de 50) de que as críticas deveriam ser exclusivamente objetivas, sem que fosse possível o derramamento de subjetivismo do redator no raciocínio colocado no papel. Assim, ela ajudou a popularizar a crítica cinematográfica, algo que Roger Ebert (de geração bem posterior, por ter nascido em 1942) abraçou de coração, amplificando o alcance desse trabalho tantas vezes incompreendido e rechaçado.

O foco da reclamação de Kael em relação a Caçadores é muito simples e algo que muitos críticos (e eu me incluo aí) dizem de muitos e muitos filmes por aí: a obra de Spielberg é divertida, mas, em última análise, vazia; nada mais do que a versão de grande orçamento dos romances pulp e dos serials dos anos 40 e 50. Ebert, por seu turno, apesar de em última análise concordar com Kael, vê outras camadas na película e a principal delas é abordagem anti-nazista dada pelo diretor. Sim, não é novidade alguma que o filme tem um forte sub-texto anti-nazista, pois isso fica mais do que óbvio por toda a projeção.

Mas Ebert aponta características muito interessantes que ele caracteriza como sendo Spielberg – e Lawrence Kasdan, que escreveu o roteiro e Philip Kaufman que deu as ideias estruturais – usando a jocosidade do personagem de Indiana Jones para cutucar profundamente o nazismo. O mais claro elemento é Hitler procurando relíquias da religião judaica – a Arca guarda os resquícios das tábuas dos 10 Mandamentos – para obter vantagem durante a vindoura 2ª Guerra Mundial (o filme se passa em 1936, três anos antes do início do conflito). Mas há muitos outros elementos: a iconografia nazista é sistematicamente destruída ao longo da fita, seja a águia e suástica sendo queimadas na caixa de madeira que guarda a Arca, seja nas “chagas” que marcam a mão de Arnold Toht (Ronald Lacey) quando segura o medalhão de Marion Ravenwood (Karen Allen). Ebert salienta até mesmo o personagem de Paul Freeman, o maligno francês Dr. René Belloq como uma feroz crítica à França durante a guerra, ora de um lado, ora de outro, algo que realmente faz sentido considerando-se a escolha da nacionalidade do personagem. E, como se isso não bastasse, o momento em que Indiana Jones (Harrison Ford) segura e quebra a estrela da Mercedes-Benz durante a fantástica perseguição automobilística funcionaria também como uma forma de derrubar a iconografia nazista-alemã ao longo de toda a obra.

Assim, mesmo a pegada “Sessão da Tarde” que Spielberg imprime em Caçadores ganha forte e constante sub-texto crítico que enriquece a experiência cinematográfica, aliando leveza narrativa com “marretadas” fortíssimas contra o regime mais assassino do século XX. É quase como uma forma de doutrinação em que determinado posicionamento político fosse incutido no subconsciente sem que percebamos. Sorte que Spielberg é “do bem”…

Voltando à Pauline Kael, cabe lembrar que seu veredito não pode ser visto como um “crítico esnobe” que não consegue enxergar além do seu nariz empinado. Seu posicionamento é perfeitamente compreensível e aceitável considerando-se sua geração, sua forma de encarar o Cinema. Primeiro, ela nunca foi de medir palavras (a crítica dela de Luzes da Ribalta é destruidora) e ela canta as cartas como as vê. Para ela, Caçadores é, mal ou bem, o que eu e vários outros críticos atuais acham de, por exemplo, a franquia Transformers, filmes que têm sua gênese no marketing e não na Arte, filmes que levam em consideração em grande parte só o que podem vender fora das telonas. Mesmo reconhecendo a qualidade da direção e da direção de arte, Kael é inclemente em seu raciocínio de que os filmes devem oferecer aquele “algo mais” que ela reputa ausente na obra de Spielberg, diretor que ela classifica como “convencional, mas que podia dirigir material convencional melhor do que qualquer outra pessoa, e com espírito alegre”.

Kael, em 1981, não sabia até que ponto o Cinema poderia chegar. Ela não fazia ideia do advento da computação gráfica e da febre de continuações, prelúdios, remakes e spin-offs que assolaria Hollywood alguns anos depois. Assim, seu “sarrafo comparativo” era naturalmente exigente demais, esperando algo além do básico.

No entanto, Os Caçadores da Arca Perdida é além do básico. Muito além do básico. Na verdade, o filme é a quintessência do Cinema de Aventura, do cinema muito despreocupado com algo mais do que apenas a diversão, mas que, por outro lado, não emburrece o espectador, não alcança o denominador comum mais baixo possível para agradar a todos. Há, na obra, muito coração tanto atrás quanto na frente das câmeras. Se Spielberg comprova o manejo de ritmo de aventura como poucos diretores conseguem, Harrison Ford tem, aqui, sua melhor criação. Indiana Jones é seu verdadeiro grande personagem, muito superior a Han Solo e tudo que ele viria a fazer depois, mesmo comparado a Rick Deckard de Blade Runner ou John Book de A Testemunha. Ford atua na medida do necessário para formar seu arqueólogo aventureiro com exatas medidas de seriedade, comicidade e despreocupação. Ele é o típico herói das matinês dos serials dos anos 40 e 50 nos EUA, como Flash Gordon, Buck Rogers e Doc Savage, mas acrescentando humanidade e, portanto, falibilidade a estes personagens. Trata-se de um personagem cativante, que o espectador não consegue simplesmente deixar de preocupar-se, mesmo sabendo que nada acontecerá com ele. Sofremos e respiramos Dr. Jones (Eu detesto cobras!) em cada sequência de aventura sem que nos sintamos fadigados pela correria, pelas lutas, pelos mais do que improváveis malabarismos que ele acaba fazendo. Se Spielberg, Lucas, Kasdan e Kaufman criaram o personagem no papel, Ford foi o verdadeiro responsável por ele funcionar com precisão, tornando-o um dos mais icônicos da Sétima Arte.

Mas todo o restante do elenco também está azeitado, desde o hesitante mas enternecedor Marcus Brody (Denholm Elliott), passando pelo fiel e alegre Sallah (John Rhys-Davies) e chegando ao ponto alto com Marion (Allen), a “dama em perigo” que, porém, sabe muito bem se virar sozinha. Mesmo o obsessivo Belloq de Freeman, que não tem nem de perto o tempo de tela de Sallah ou Marion, consegue gerar a ojeriza que seu personagem precisa criar no espectador, formando um vilão egoísta que o espectador não esquecerá.

Há um outro “personagem” que merece todo o destaque aqui: os efeitos especiais, em sua maioria formados por efeitos práticos e pinturas de fundo matte. Tudo na película convence por parecer verdadeiro, por nos transportar efetivamente para esse mundo de aventuras excitantes ao redor do mundo na Amazônia, Nepal e Cairo e por nos colocar no meio de missões impossíveis e que aceitamos facilmente pela imersão eficientemente causada por um Spielberg talvez no ponto mais alto de uma carreira repleta de pontos altos. Afinal de contas, são sequências memoráveis atrás de sequências memoráveis que encantam como se as assistíssemos pela primeira vez mesmo depois de as assistirmos incontáveis vezes. É a sequência de abertura e sua pedra rolante (com um Alfred Molina novinho!), a cobra no hidroplano, a luta contra o grandalhão nazista no avião, a perseguição automobilística, a cena “de amor” no navio e o encerramento na ilha com a cerimônia – incômoda aos nazistas; mais uma estocada nos nazistas! – de abertura da Arca.

E tudo isso conectado por uma das mais incríveis trilhas sonoras já compostas por John Williams, com a música tema sendo conhecida e assoviada mesmo por aqueles três ou quatro indivíduos que jamais viram esse filme. Se pararmos para pensar, da mesma maneira que Spielberg encapsulou os conceitos de Filme de Aventura aqui e que Ford incorporou o Herói de Aventura, Williams compôs a Música de Ação por excelência, marcante, bela, cheia de nuances e tomada de leit motifs caracterizadores de personagens e momentos-chave da projeção.

Os Caçadores da Arca Perdida pode talvez representar uma espécie de “início do declínio” da qualidade da fábrica marketeira hollywoodiana como Pauline Kael apregoa, mas, como Roger Ebert deixa claro, a primeira aventura de Indiana Jones é uma volta ao passado que homenageia, atualiza e eleva à décima potência o filme de aventura sem subestimar o espectador e, principalmente, sem tratá-lo como uma criança que precisa de estímulos sensoriais a cada centésimo de segundo. Trata-se de uma aventura atemporal que merece toda a veneração que alcançou ao longo dos anos!

Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, EUA – 1981)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Lawrence Kasdan
Elenco: Harrison Ford, Karen Allen, Paul Freeman,  Ronald Lacey, John Rhys-Davies, Denholm Elliott, Alfred Molina, Wolf Kahler, Anthony Higgins
Duração: 115 min.

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