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Crítica | Os Arrependidos

por Davi Lima
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O filme Os Arrependidos começa com um amplo discurso sobre a Ditadura no Brasil, para depois fechar numa linha crítica necessária e condizente com os artifícios colocados pelos diretores Ricardo Calil e Armando Antenore. O amplo discurso é sobre as propagandas dos dois lados políticos, a esquerda armada e a direita opressora, mas depois o documentário aposta numa regulagem para denúncia direta da Ditadura que deixa vestígios na polícia militar. O uso das propagandas da Ditadura nas transições da montagem, fazendo o reverso do tensor das leituras de documentos escritos pelos ditos “arrependidos” da luta armada e pelos militares, cria uma dramaticidade cumulativa. Forma-se, assim, o antagonismo sensorial principal para apresentar a relação da propaganda dos “arrependidos” com a tortura, num afunilamento narrativo expressivo.

Para que esse afunilamento seja organizado e efetivo, três artifícios bases são utilizados, independentemente da ordem cronológica do filme, e que vão ganhando potência dramática: as entrevistas contemporâneas com os ditos “arrependidos” do ativismo; os registros descritivos, lidos por um narrador com uma trilha sonora tensa; as propagandas televisivas da Ditadura Militar no Brasil. Entre esses artifícios há as entrevistas da época na TV com os três primeiros que se retrataram com a rede pública em 1970, ou que o filme mostra: Marcos Vinícius Fernandes, Massafumi Yoshinaga e Rômulo Romero Fontes. A primeira parte do filme gira em torno desses entrevistados que ampliam o campo de visão sobre a época e como o tempo é posto em trauma. 

Marcos e Rômulo, os únicos vivos ainda desses três, criam discursos desencontrados quanto às delações dos companheiros militantes e as torturas, o que torna ainda mais difusa a discussão sobre o nome “arrependidos” tão repreendido por eles na época da entrevista em 70 quanto no presente, mas de maneiras diferentes. Enquanto Marcos se resolve em concordância com sua entrevista há mais de 50 anos, ele demonstra uma incerteza sobre o termo “arrependido”, algo próximo a uma complacência com a fixação tão pressionante dos militares na história quanto a autocrítica deles com a esquerda no período. Já Rômulo parece pertencer a uma classe de pessoas que pela idade esconde o passado em prol de abstrações políticas, dimensionando com positividade o governo de Médici e aparentemente desconfortável com a entrevista em que às vezes saía de foco, ou se levantava para pegar um cigarro. Os diretores aparentam ser muito metódicos nas perguntas sem que elas pareçam técnicas, como bons historiadores da História Oral que conhecem do trabalho com a memória e com o discurso. Ambos os entrevistados parecem conformados e ao mesmo tempo traumatizados em suas levezas ao falarem do assunto. Isso formula uma certa ampliação política na compreensão binária da Ditadura.

Porém, em meio a esse desenvolvimento, em que os entrevistados explicam suas ações no passado, o teor propagandista dos militares em cima disso e as cartas que eles escreveram na prisão, há um tom irônico como a montagem do documentário inclui propagandas televisivas do período militar. Um exemplo, quando os entrevistados tratam do tema juventude, como símbolo que englobava o forte teor da propaganda em cima de “Os Arrependidos” e o que os motivou a participar, eles e outros jovens da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), é posto em tela o que para os militares seriam os jovens perfeitos, andando de carro por um ambiente rural, comendo frutas e saltitando de alegria. Paralelamente, quando se denomina o termo “patriota”, ou “nacionalismo”, no documentário em relação à luta armada, uma propaganda sobre um pai ensinando uma criança a desenhar a bandeira do Brasil é mostrada, certa hora no filme.  

E desse jeito, em nenhum momento o drama é perdido na narrativa. Porque embora haja uma trilha sonora tensionante do que os militares escreveram sobre os posteriores e pressionados, mais ainda, “arrependidos”, dimensionando o peso disso, do forte trabalho de marketing televisivo, manipulador da semiótica para criar uma imagem positiva demais do período militar, serve como amedrontamento a quem assiste à edição, dimensionando uma forte antítese que fomenta o drama ainda mais.

Assim, quando se entende que um dos primeiros “arrependidos”, o que mais se divulgou na TV, Massafumi Yoshinaga, que se direcionou contra Carlos Lamarca, à época líder da VPR, não aparecia nas entrevistas contemporâneas, o documentário se utiliza do seu caso emblemático como virada de trama, junto de Celso Lungaretti, um dos “arrependidos” posteriores, na base de muita tortura. O caso de Massafumi é afunilador no filme por ele ser um intelectual da esquerda, ao menos pelo que a irmã de Marcos, Márcia Fernandes, descreve sobre seu ex-interesse amoroso. 

A proximidade dos irmãos Fernandes dá uma dimensão, pela entrevista, de que o “arrependido” mais popularizado pela mídia passou a sofrer de uma depressão que o “mutou” até seu suicídio, em vista de um ostracismo político após sair da prisão. Se Marcos e Rômulo, especialmente Marcos, levantam o extremismo da esquerda no levante armado, em que qualquer opinião diferente no meio seria chamado de traidor, como uma vez Trotsky, revolucionário russo, foi considerado, Massafumi sendo um traidor de ambos os lados políticos, isolado como um registro da época, mostra seu caminhar solitário, e o pesar das torturas na memória de Celso finaliza o amplo discurso com o qual qualquer espectador poderia se conectar.

Os diretores confluem, assim, em um discurso honesto em um começo de curiosidades tensas até cruzar a linha final da contemporaneidade que a temática dos “arrependidos” emanava. Independentemente da verdadeira autocrítica de cada militante, a deturpação e a propaganda manipulativa e consequentemente forçada a outros militantes presos a seguirem uma conduta midiática aos primeiros “arrependidos” é o foco. Essa é a expressão que ao final da última entrevista tudo se dramatiza completamente, empurrando temporalmente o documentário para o presente. 

Com a carta do “arrependido” falecido Manuel Henrique Ferreira, que expôs a farsa da Ditadura em uma carta, a entrevistada Graça Lago (companheira de Manuel) e a filha dele, Manuela Werneck Ferreira, leem juntas e denunciam a perseverança da violência da Ditadura nos atos policiais, num estreitamento temporal e narrativo que entrega outra face negativa da memória do período militar. Entre propagandas e torturas, a prisão da deturpação midiática e seu efeito social representam o arrependimento real.

Os Arrependidos – Brasil, 2021
Direção: Ricardo Calil, Armando Antenore
Roteiro: Ricardo Calil, Armando Antenore
Elenco: Celso Lungaretti, Graça Lago, Gustavo Guimarães Barbosa, Manuela Werneck Ferreira, Márcia Fernandes, Marcos Alberto Martini, Marcos Vinício Fernandes, Rômulo Romero Pontes
Duração: 74 minutos

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