Obs: Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas.
Orphan Black mexe com e se aprofunda em um dos pilares da ficção científica, que compete fortemente com a viagem no tempo e seus paradoxos temporais e com a inteligência artificial como um dos mais interessantes artifícios narrativos para se construir uma obra cinematográfica do gênero: a clonagem humana. Mas o melhor é que a série criada por John Fawcett e Graeme Manson não se fia em explicações da tecnologia ou da biologia envolvidas, mas sim no desenvolvimento de seus personagens, vários deles, claro, vividos pela camaleônica Tatiana Maslany que, até agora, viveu, com diferentes graus de profundidade, 11 versões dela mesma.
E a série constrói seus intrincados mistérios a partir de outro artifício muito comumente usado em obras sci-fi e que ganhou um bom grau de popularidade televisiva a partir de Arquivo X: a “hierarquia vilanesca revelada a conta gotas”. Afinal, a cada temporada da série, o mistério é aprofundado a partir do que poderia metaforicamente ser uma longa escada em que cada degrau representa uma “fase”. Quando não há um planejamento muito preciso, esse tipo de estrutura pode desmoronar com reviravoltas rocambolescas sem sentido algum, o que, aliás, vitimou Arquivo X. Ainda que sempre seja necessário um nível razoável de suspensão da descrença com mortes que não são efetivamente mortes e salvamentos de último minuto, Orphan Black, em geral, tem conseguido navegar por essas águas turbulentas sem balançar demais o navio, mantendo uma lógica interna que funciona e mantém a medida exata entre tensão, ação e ficção científica.
A quarta temporada, muito claramente, nos prepara para o final da série, fazendo Sarah Manning e suas sestras alcançarem quase o topo da metafórica escada, com o final boss logo ali na esquina, a ser revelado em carne e osso (em tese decrépitos se ele for mesmo o P.T. Westmoreland original, fundador do “neolucionismo” há mais de um século) na derradeira temporada. E, para que isso seja possível, grande parte da temporada volta ao passado para estudar os últimos dias da clone que começou isso tudo: a policial suicida Beth Childs.
É assim que, com The Collapse of Nature, a temporada abre. Revisitamos o passado com Beth ainda viva e trabalhando ao lado de seu parceiro Art Bell (Kevin Hanchard) e começamos a navegar por sua psiquê abalada pelas revelações sobre sua gênese, além de sua relação com Mika (ou M.K.), a clone hacker paranoica que ironicamente usa uma máscara de ovelha para interagir socialmente, se é que essa expressão é aplicável a ela. No entanto, acertadamente, ainda que a temporada volte diversas vezes para Beth ainda viva no passado, utilizando-a brevemente inclusive como um fantasma para Sarah, os showrunners acertadamente não carregam demais nesses flashbacks, focando a ação no presente que espelha e aprofunda tudo o que conhecemos até aqui.
O grande erro da temporada anterior, que foi a trama paralela razoavelmente desconectada de Alison e Donnie Hendrix como traficantes de drogas para custear campanha eleitoral na escola dos filhos, inexiste aqui. Muito ao contrário, aliás, Alison e Donnie (Kristian Bruun), apesar de pouco interagirem fisicamente com as demais clones, passam novamente a fazer parte integral da trama maior, especialmente ao desencavarem o cadáver de Aldous Leekie (Matt Frewer) de sua garagem para colherem a lesma cibernética em seu rosto para estudo por Cosima e Scott (Josh Vokey). O que acontece, em contraste, é a redução da participação da muito grávida Helena, que é defenestrada sem cerimônia da temporada, voltando triunfalmente como uma versão de Robinson Crusoé em um daqueles momentos exatos para ela funcionar de deus ex machina, com direito a flechada em pescoço de bandido.
Falando no linguajar pseudo-técnico da série, é alvissareiro notar que ele continua sendo bem manejado, com sua restrição ao pequeno núcleo composto pelos dois biogeneticistas parceiros, expandido aqui levemente pela “oposição” composta por uma Rachel em plena recuperação na misteriosa “Ilha do Dr. Moreau” e pela criadora das clones, Susan Duncan, vivida de forma deliciosamente sinistra pela veterana Rosemary Dunsmore. E, claro, como parte da evolução dos mistérios da série, descobrimos a existência de uma nova vilã, Evie Cho (Jessalyn Wanlim), presidente da Neolution que, porém, ganha pouquíssimo desenvolvimento na temporada, sendo logo descartada. Com isso, o espectador sabe o que esperar de cada mudança de foco, evitando que as questões científicas – aqui marcadamente envolvendo as tais lesmas cibernéticas e práticas genéticas imorais e de cunho eugenista.
Em termos de novos clones, é bom ver a volta e a exploração mais detalhada da clone “loira burra” paranoica, apresentada brevemente na temporada passada. Krystal Goderitch é mais uma excelente criação de Maslany que funciona como a mais completa antítese de Sarah, com especial destaque para o grande momento da revelação de que Krystal é um clone, somente para ela duvidar do fato por não se ver em Sarah. Além disso, seu uso dentro da narrativa quase que como um Inspetor Closeau, acertando em seus erros, gera um bem-vindo alívio cômico que é bem conduzido durante a temporada. O que efetivamente não funciona é a trama paralela lidando com a localização, por Fee (Jordan Gavaris) de sua irmã biológica, Adele (Lauren Hammersley), e sua inclusão em sua família disfuncional. Não é, porém, algo intrusivo o suficiente para detrair muito da experiência como um todo.
O melhor aspecto da temporada, porém, é espelhar a espiral de queda de Sarah no passado de Beth, com a principal clone perigosamente resvalando em movimentos auto-destrutivos que a levam próximo ao suicídio. Em poucas palavras, graças às violentas ações de Evie Cho, por intermédio do policial corrupto Marty Duko (Gord Rand), que literalmente dizima a pesquisa de Cosima e Scott e toda a matriz genética dos clones LEDA e CASTOR (inclusive a sofrida, mas sempre forte Kendall Malone, vivida maravilhosamente bem por Alison Steadman nos poucos minutos em que aparece). Essa tábula rasa, aliás, é muito boa em termos narrativos, pois “zera” o conhecimento sobre o intrincado passado da série e avança em direção ao seu encerramento.
O tratamento estético de Orphan Black sempre mereceu destaque. E, na quarta temporada, ele ganha um viés especialmente sombrio e desesperançoso, que amplifica o sentimento finalista que ela tem e, também, o mergulho quase sem volta de Sarah à sua persona que antecede seu testemunho da morte de Beth Childs. Usando a característica paleta de cores azulada e preta da série, a direção de arte se esmera em manter uma pegada atemporal, oscilando entre locações escuras – mas não mal iluminadas, o que pode parecer uma contradição, mas não é – que quase simbolizam o lado bom das pessoas em contraste a ambientes limpos, iluminados e claros que simbolizam exatamente o oposto: perigo e podridão humana.
O caminho está bem pavimentado para o final, que promete ser muito interessante lá na misteriosa ilha perdida, com Sarah e Cosima quase fora de combate e uma Rachel triunfalmente de volta ao poder sendo visitada por Westmoreland (ou não…). Resta esperar para saber se Fawcett e Manson saberão encerrar sua rede de intrigas clônicas sem deixar pontas soltas.
Orphan Black – 4ª Temporada (Canadá – 14 de abril a 16 de junho de 2016)
Showrunners: John Fawcett, Graeme Manson
Direção: John Fawcett, Ken Girotti, Peter Stebbings, David Wellington, Grant Harvey, David Frazee, Aaron Morton
Roteiro: Graeme Manson, Russ Cochrane, Aubrey Nealon, Kate Melville, Chris Roberts, Nikolijne Troubetzkoy, Peter Mohan, Alex Levine
Elenco: Tatiana Maslany, Jordan Gavaris, Kristian Bruun, Maria Doyle Kennedy, Kevin Hanchard, Josh Vokey, Dylan Bruce, Ari Millen, Skyler Wexler, Rosemary Dunsmore, Cynthia Galant, James Frain, Jessalyn Wanlim, Évelyne Brochu, Gord Rand, Lauren Hammersley
Duração: 44 min. aprox. (por episódio – 10 episódios no total)