A ainda curta carreira artística de S. Craig Zahler é de uma variedade impressionante. Ele começou como como baterista, compositor e cantor de bandas de heavy e black metal, depois partiu para ser autor literário em 2010, com o faroeste Uma Congregação de Chacais, escrevendo, até o momento, seis romances e um audiobook, em seguida tentou a sorte grande na indústria cinematográfica, primeiro como roteirista ao escrever Desespero, de 2011, e, depois, como diretor e roteirista, produzindo três obras viscerais a partir de 2015 – Rastro de Maldade, Confronto no Pavilhão 99 e Justiça Brutal -, intercaladas por mais um trabalho de roteiro apenas em Puppet Master: The Littlest Reich, de 2018. Finalmente, em 2021, com As Cirurgias Proibidas do Horrível Dr. Divinus, tornou-se autor de quadrinhos, cuidando tanto do roteiro quanto da arte. Tendo gostado da experiência na Nona Arte, ele então repetiu a dose em 2022, lançando Organismos de um Cosmo Perdido, novamente roteirizando e desenhando a graphic novel.
Com uma arte em preto e branco de traços simples que pode até ser caracterizada como rudimentar, mas que transmite bem seu inconfundível estilo e que, além disso isso, mais do que dá conta do recado por Zahler ter um domínio surpreendente da distribuição de quadros e da narrativa sequencial, sua ficção científica lida, em linhas muito gerais, com uma invasão alienígena à Terra que, a muito custo, é rechaçada pelas forças combinadas dos EUA e China. Quando digo linhas gerais, eu realmente quero dizer isso, pois Organismos de um Cosmo Antigo é muito mais do que um Independence Day em quadrinhos, até porque esse aspecto da história ocupa, apenas, as primeiras 40 e poucas páginas de sua obra e tem como função primordial estabelecer as bases para o que segue, que é um grupo de cientistas bancado por um bilionário fazendo de tudo para estudar a biologia e tecnologia alienígena para entender exatamente o que aconteceu e impedir novos ataques, tudo enquanto as duas potências em tese vitoriosas passam anos em uma segunda Guerra Fria.
Todo o veloz e furioso primeiro capítulo voltado à invasão em si e ao contra-ataque de cunho exclusivamente militar é cirurgicamente usado por Zahler para apresentar o leitor a situações diversas que introduzem seus protagonistas da segunda parte em diante. Com isso, a guerra do início serve como pano de fundo para que o bilionário Carlton Land seja apresentado durante a cerimônia de seu casamento com o amor de sua vida no Havaí, para que o cientista chefe das Forças Armadas dos EUA, Kenneth Yamazaki, tenha oportunidade de expressar suas dúvidas sobre a natureza do que está acontecendo, o que logo lhe vale a condenação ao ostracismo e ao Major Caldwell, único sobrevivente do primeiro ataque aéreo à nave alienígena estacionada no meio do Oceano do Pacífico. O drama dos três personagens iniciais é narrado com bastante paciência, especialmente o de Land, cuja história trágica pessoal serve de trampolim para o momento seguinte em que seu dinheiro herdado passa a ser empregado em um projeto privado – batizado de Operação: Salvaguarda Mundial – para compreender a tecnologia e a biologia alienígena, especialmente o aparente “sumiço” – como em um teletransporte – de uma pequena unidade da nave em tese inimiga.
Zahler não tem pressa. A referida operação é proposital e fascinantemente lenta, com a introdução de diversos novos personagens – cientistas e médicos – que passam a ganhar o destaque absoluto nas descobertas a conta gotas que se seguem, com uma passagem temporal de vários anos bem construída e bem ritmada que realmente oferece desenvolvimento narrativo tanto macro, sobre os avanços tecnológicos deste seleto grupo, quanto micro, com as relações interpessoais entre os cientistas e, também, deles com Land e, claro, Land sozinho no lugar para onde ele acaba indo viver quase o tempo todo em que a operação por ele financiada caminha a passos largos. Muitos podem achar que a história fica “lenta” por esse meio realmente não conter nenhuma ação, mas a grande verdade é que Zahler oferece tanta coisa para apreciar, sejam as “tecnobaboseiras” que ele aborda (várias delas galgadas na realidade, seja prática ou teórica, vale dizer) que vão se acumulando e usadas na terceira parte da história, seja na forma como o núcleo principal de personagens vai ganhando estofo e camadas, notadamente Land (estou sendo críptico sobre o que ocorre com o personagem, pois creio que é uma parte importante da HQ a abordagem detalhada que Zahler dá a ele), em uma narrativa sobre amor, culpa, perdão e, claro, humanidade.
Quando a graphic novel, então, vai para a sua terceira e mais sci-fi de todas as partes, com os frutos… digamos… espaciais da Operação: Salvaguarda Mundial, Zahler solta completamente os freios e mergulha fundo em uma mitologia fascinante de contornos lovecraftianos que, então, finalmente contextualiza e explica o título de sua obra. Diria que é neste ponto que a história perde um pouco de sua força – ainda que o deslumbramento continue – principalmente porque há menos espaço para as relações pessoais e verdadeiramente humanas entre os personagens, mesmo que o autor tente compensar isso com uma abordagem digna de uma obra cinematográfica da ordem de, por exemplo, Interestelar. Mas eu fui cuidadoso ao dizer “um pouco da força”, pois é apenas um pouco mesmo, já que sua HQ é daquelas irresistíveis de ponta a ponta, com o autor criando genuíno interesse pelo que está para acontecer a missão científica de Land e com cada um de seus personagens.
Organismos de um Cosmo Antigo (fiz uma tradução literal do título em inglês já que, nada de publicação da presente crítica, a obra não havia sido publicada no Brasil) é uma leitura prazerosa e recompensadora de um autor e desenhista de quadrinhos ainda em começo de carreira, mas que já mostra imenso potencial, como ele mostrou imediatamente com seus filmes. Ainda preferiria que Zahler retornasse às obras cinematográficas, mas, enquanto ele não quer ou não consegue, fico feliz em constatar que ele simplesmente se recusa a ficar quieto e não para de experimentar e desafiar seu talento nas mais diversas artes.
Organismos de um Cosmo Antigo (Organisms of an Ancient Cosmos – EUA, 2022)
Roteiro: S. Craig Zahler
Arte: S. Craig Zahler
Editora: Dark Horse Comics
Data de publicação: 06 de dezembro de 2022
Páginas: 192