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Crítica | Oppenheimer

Responsabilidade e julgamento.

por Luiz Santiago
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Existem dois tipos principais de pessoas no mundo quando falamos de responsabilidade. Um tipo que faz e diz tudo o que lhe dá na telha, mas não quer assumir nenhuma responsabilidade pelos seus atos e falas; e um outro tipo que entende e, mesmo no desconforto, carrega nas costas a responsabilidade que lhe é devida. Em seu O Existencialismo é um Humanismo (1978), Sartre disse que o indivíduo é “condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer“. No fim das contas, queira a pessoa ou não, a responsabilidade pelo que fizer cairá em seu colo, seja pela força da lei, pela opinião da comunidade à sua volta ou por obra de sua própria consciência. O olhar penetrante, ferido e destruidor de Cillian Murphy, no papel de Julius Robert Oppenheimer, comunica para o público o resultado de um fardo inimaginável sendo carregado. Aqui está um ator na melhor interpretação de sua carreira até o momento (e ele não é o único neste filme: Robert Downey Jr. também se enquadra nesta categoria) interpretando magistralmente um dos cientistas mais difíceis e geniais do século XX. E toda essa magnífica interpretação está calcada na ideia de que este homem, o denominado “pai da bomba atômica“, verdadeiramente assumiu para si o peso desse título. Seu olhar nos diz tudo sem nenhuma palavra, e faz algo ainda mais impactante: permite-nos sentir o peso que carrega alguém que criou uma das armas mais destruidoras da humanidade. Que responsabilidade!

Baseado na biografia O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano (2005), Oppenheimer foi escrito por Christopher Nolan em primeira pessoa, transmitindo com forte intensidade o que o próprio cineasta entendeu como “o pessoal interagindo com o histórico e o geopolítico” em referência ao biografado. São três horas de um petardo fortemente ancorado em diálogos rápidos e densos, com dezenas de personagens abordando um tema difícil, moral e teoricamente, com encadeamento narrativo alinear e estrutura de montagem que não entrega nada de bandeja para o público. As respostas, aqui, demoram a aparecer, e o enredo vai se construindo a partir das reações dos personagens a diferentes desejos, pesquisas, descobertas e brigas entre si, nunca tendo por base o clássico desenvolvimento individual ou de grupo, seguido pelo conflito interno ou externo, e desaguando na queda das máscaras e na chegada ao clímax. Oppenheimer é a faceta de um Nolan maduro, experimental e até mais plural em termos de direção, basta olhar as diferentes combinações no uso de câmera (ângulos e planos) utilizadas por ele na obra, montando um drama pessoal que envolve um lado praticamente incompreensível da Física, a Segunda Guerra Mundial, o Projeto Manhattan, a perseguição aos comunistas nos Estados Unidos e dois processos legais de interrogatório onde ele estampa uma tradição estética e narrativa do cinema de seu país, representadas em obras que lhe serviram de inspiração: JFK: A Pergunta que Não Quer Calar (1991) e A Rede Social (2010).

Não se vê aqui um louvor à figura de Oppenheimer e nem da bomba, mas a demonstração do que ele, suas ideias e suas realizações representaram para a nação que era os Estados Unidos naquele momento da História; esta nação, sim, louvando o cientista e a criação. Alguns podem seguir esse caminho argumentativo porque o longa é íntimo e emotivo, estando sempre grudado no protagonista e no elenco de apoio, dando a impressão de que aquela visão, posta em toda glória técnica, é uma coroação. Entretanto, os fios narrativos mostram uma exposição bastante lógica de construção, ápice e queda das figuras centrais em pauta, assim como da própria bomba (primeiro festejada, depois boicotada e enfim temida por seus próprios criadores), escancarada como um terrível marco de extinção da humanidade. Tudo isso recortado por Nolan a partir de sua visão dos fatos e pessoas, ora criticando a segurança nacional e as ações do Exército, ora debatendo algo que era verdadeiramente caro a Oppenheimer e outros cientistas, até 1945 (“os nazistas não podem conceber essa arma antes de nós!”); ora vendo os desdobramentos políticos e interesses dos poderosos se sobreporem à garantia de sobrevivência humana. Em outras palavras, o grande medo e a grande questão da corrida armamentista (EUA X URSS) durante a Guerra Fria.

O fato de o diretor não utilizar CGI neste filme e conseguir um resultado de nível tão alto e impactante, é um capítulo à parte do trabalho realizado por ele junto ao fotógrafo Hoyte Van Hoytema. Para atender as exigências do cineasta, a Kodak desenvolveu o primeiro suporte de filme em preto e branco para IMAX, permitindo ao cineasta criar algo novo com uma tecnologia que ele já dominava, somada à combinação de película em grande formato (65mm). Na prática, isso consegue expandir tudo o que vemos na tela, como se o “mundo normal” estivesse explodindo ou fosse muito maior do que realmente é, em seus espaços abertos; e transmitisse uma estranha sensação de claustrofobia em seus espaços fechados. Tendo cores ressaltadas e dimensões que forjam sensações contrastantes, a nossa impressão é que a fluidez visual de Oppenheimer segue como um barco em um mar instável, construindo tensão, compensando todos os labirintos dramáticos e equilibrando ciência e romance num drama político centrado em encenação – destaque para a sequência da Experiência Trinity e a cena do interrogatório em que Oppenheimer sentiu-se nu diante de seus algozes e de sua esposa (Emily Blunt), lembrando dos momentos com Jean Tatlock (Florence Pugh), personagem que eu gostaria muito que tivesse tido mais eventos explorados, assim como Frank Oppenheimer (Dylan Arnold), irmão do protagonista. 

Em um longa com uma temática e um personagem que podem gerar incontáveis interpretações opostas ao que de fato está sendo mostrado, todo cuidado é pouco. E um cuidado muito especial na criação das atmosferas de Oppenheimer é visto na trilha sonora, composta por Ludwig Göransson, em sua segunda colaboração com Nolan. Vejam que não existe percussão (apenas cliques metálicos), portanto, nada que alimente linhas argumentativas do tipo “é um filme militarizado, cheio de marchas conclamando os Estados Unidos a cometer o crime de guerra e contra a humanidade, no Japão”. O ato acontece de qualquer forma, mas nós não o vemos porque o diretor não caiu na armadilha de cavar um sentimento de choque através do horror pelo horror. Este não é um filme sobre Oppenheimer? Pois bem, as coisas serão mostradas a partir de suas vivências, de seu microcosmo, seja a Segunda Guerra, as bombas de Hiroshima e Nagasaki ou os eventos históricos relevantes para o contexto da obra, ocorridos entre os anos 1920 e os anos 1950. 

Göransson cria muitos temas sombrios e demonstradores de ansiedade, tendo o violino como instrumento de destaque a maior parte do tempo. Ele começa com uma abordagem mais romântica e plácida no período de formação de Oppenheimer (destacam-se aqui a harpa e o piano) e avança até as enregelantes partituras, à la Bernard Herrmann, nos blocos do Projeto Manhattan, do teste Trinity (a minha favorita de toda a trilha) e a da audiência na Comissão de Energia Atômica. Outro ponto que me encantou no trabalho musical foi a inteligência do compositor ao criar variações de tempo constantes em um mesmo ambiente cênico, chegando ao “absurdo” no ponto em que Niels Bohr (Kenneth Branagh) pergunta a Oppenheimer se ele podia “ouvir a música”, e o tema Can You Hear The Music começa a tocar. Peço que vocês escutem (está no youtube!) e contem quantas vezes o compasso muda durante a execução dessa única peça. É esplêndido como a orquestra consegue nos fazer sentir a mudança de pensamento, as variações de visão e as muitas ideias de Oppenheimer em um único e curto bloco musical. Verdadeiramente um trabalho genial do compositor – seguindo o padrão dos profissionais técnicos que trabalharam no filme, diga-se de passagem. 

Quem tem coragem de se responsabilizar pelos monstros que cria? Na hora final de Oppenheimer, a atmosfera geral muda, a decupagem das cenas se transforma e a montagem fica mais ágil. O desenho sonoro, que sempre foi algo muito forte nas produções de Nolan, apresenta mais algumas cartas interessantes e as reações dos personagens encontram uma justificativa, uma explicação ou um fim. A escolha para a explicação da conversa do protagonista com Einstein (Tom Conti) vem no momento certo, e o seu conteúdo deixa a resposta para a pergunta sobre a responsabilidade ainda mais difícil de ser dada. Oppenheimer é uma reação ao cinema passivo e puramente contemplativo, ao cinema que não faz questão nenhuma de ser cinema. É um filme que usa o máximo da engenharia da Sétima Arte de seu tempo para contar uma história importante para todos, valorizando a percepção e inteligência do espectador ao entregar na medida certa tudo o que é necessário para que se compreenda a genialidade e o tormento daquele que deu à humanidade a oportunidade de fazer com que… não existisse mais humanidade. A coragem, a glória e a punição para o Prometeu que nos entregou um tipo globalmente mortal de fogo.

Oppenheimer (EUA, Reino Unido, 2023)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan, Kai Bird, Martin Sherwin
Elenco: Cillian Murphy, Emily Blunt, Robert Downey Jr., Kenneth Branagh, Florence Pugh, Matt Damon, Rami Malek, Casey Affleck, Gary Oldman, Dane DeHaan,  Alden Ehrenreich, Scott Grimes, Jason Clarke, Kurt Koehler, Tony Goldwyn, John Gowans, Macon Blair, James D’Arcy, Harry Groener, Tom Conti, David Krumholtz, Matthias Schweighöfer, Josh Hartnett, Josh Zuckerman, Dylan Arnold, Emma Dumont, Jefferson Hall, Britt Kyle, Louise Lombard, Matthew Modine, Gustaf Skarsgård, Danny Deferrari, Devon Bostick, Christopher Denham, Máté Haumann
Duração: 180 min.

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