Como meu colega Luiz Santiago escreveu em sua belíssima crítica do longa Oppenheimer, existe um cuidado muito especial na criação das atmosferas da produção através da trilha sonora composta por Ludwig Göransson, que navega entre temas mais sombrios e de ansiedade com algumas peças de puro descobrimento. A faixa de abertura da trilha, Fission, encapsula os melhores elementos da obra, situando o violino como o centro instrumental da partitura, percorrendo entre momentos silenciosamente oprimidos, uma certa melancolia intrigante com um senso de curiosidade e até trechos que emulam sirenes de ataques aéreos, preparando-nos para a grande performance da obra sem negar o nível intimista da história. Afinal, Oppenheimer conta um grande evento através de uma perspectiva íntima.
É o início perfeito à obra, nos situando do tom, da escala e do nível emocional do longa. A segunda faixa, Can You Hear The Music, encapsula o que vemos no primeiro ato do filme, sobre a formação do cientista, em uma peça complexa em suas variações de compasso e à medida que os violinos ficam mais altos e rápidos com os descobrimentos de Oppenheimer. É um bloco tão magnífico na sua maneira de personificar sensações de criatividade, de ideias dançando, da paixão por conhecimento e um sentimento puro de exploração. É um dos blocos mais fantásticos que já tive o prazer de assistir em uma sala de cinema, colocando de lado todas as questões ambíguas da narrativa para encarnar a genialidade de Oppenheimer com um senso de maravilha agradável e mágico.
Outras peças no primeiro ato seguem uma toada similar, como A Lowly Shoe Salesman, Quantum Mechanics, Gravity Swallows Light, Meeting Kitty e Groves, todas com texturas delicadas de harpa e ocasionalmente piano mesclando-se ao violino como condutor central de melodias ora românticas, ora suavemente melancólicas que tratam sobre a vida pessoal de Oppenheimer, seus amores e desamores, amizades, frustrações e crescimento. Você consegue sentir a pessoalidade da música, seu tratamento elegante e não-operístico, o vibrato bonito e uma experiência reconfortantemente humana mesmo em seus trechos mais taciturnos e quebrados. São harmonias muito mais acessíveis e interessadas numa conexão com o personagem, seja por sua genialidade, seu amor ou sua tristeza vaga, do que jamais imaginei encontrar em uma obra que esperamos ser “explosiva”.
Claro que há uma virada de chave a partir de Manhattan Project, que inicia o ato de criação da bomba, mas até aqui Göransson se nega a fazer um trabalho “épico”, no sentido óbvio de boom e de cacofonia que esperaríamos de uma produção sobre este evento. O tom dado na peça é inquisitivo, imponente e agressivo, com mais ênfase do mix eletrônico que percorre a trilha para nos situar da corrida contra o tempo em Los Alamos, da urgência do trabalho e do impacto inquietante que terá na História, na maneira inteligente como a trilha sonora tem variações de tempo e de intensidade de acordo com o espaço cênico do filme.
Neste, digamos, “segundo ato”, a tensão nunca é melodicamente hiperbólica… é mais assombrosa, numa arquitetura de som complexa em sua incorporação de cliques metálicos e batidas de baixo. American Prometheus tem essa característica rítmica, que não abandona a melancolia, mas que através de ostinatos melódicos e um fervor eletrônico cria o sentimento de alarme e de ansiedade que acompanha o nascimento da catástrofe. A aflição é tão palpável que o estômago chega a revirar, mesmo em uma faixa mais lenta como a retumbante Atmospheric Ignition ou a ritmicamente sinistra Fusion em suas cordas de tensão e metais agressivos que trazem um final dramático para um grande bloco do filme.
Em Colonel Pash, Theorists e Ground Zero vemos um pouco do mesmo trabalho, o que pode ser cansativo ao escutar a trilha de uma só vez, mas que faz perfeito sentido dentro da identidade da produção, mesclando melancolia com um sentimento de preocupação na maneira que as cordas, os metais e o eletrônico entram em colapso sem nunca explodirem. O violino sempre mantém aquele tom de neurose, de medo e de uma premonição malévola de algo que vai acontecer, mas a música nunca eclode, o que é perfeito para nos manter nesta transe hipnótica de dar nos nervos que é toda a tensão, pressa e pavor do que estão criando.
Ground Zero é particularmente interessante nessa composição, emulando o som de partículas e reações em cadeia, que também parecem batimentos cardíacos – talvez a faixa mais imersiva em relação ao processo científico do filme. Junto dela, temos Trinity, a dupla que retrata o teste da bomba, em uma faixa incrivelmente acelerada em suas cordas, aguda nos metais e um trabalho sempre em crescendo da orquestra, no que é provavelmente o clímax de tensão da produção. É interessante como os dois minutos finais da faixa retornam a um ritmo lento e mais gostoso de ouvir, até meio otimista eu diria, como que em êxtase pelo resultado positivo do teste, mas que, claro, logo depois é refletido de maneira pessimista e sofrida pela soturna melodia de What We Have Done, que termina com um som poderoso de mágoa e arrependimento.
Existe um encadeamento musical muito metódico aqui (e objetivo, claro), entre a ansiedade do teste, a euforia do “espetáculo” e a reflexão desoladora, seguido de uma série de faixas menos estressantes, mas ainda melancólicas e tristes, que retratam o terceiro ato mais político da produção, como Power Stays In The Shadows (uma produção cheia de elementos sonoros misteriosos), The Trial e Dr. Hill que tocam mais sobre essas mudanças de alianças, traições e objeções morais. Kitty Comes To Testify muda um pouco a atmosfera com um tom romântico em suas cordas suaves e notas de piano agradáveis, que resgatam a paixão e esperança do começo da obra, deixando o trabalho respirar, apesar do final da faixa trazer o mesmo aspecto percussivo de ansiedade da trilha.
As duas faixas que concluem a trilha sonora, Destroyer of Worlds e Oppenheimer, trazem todas as representações do álbum, com as variações de compasso e suavidade melódica que retratam o brilhantismo e a criatividade do cientista, mescladas com a tensão e desolação das consequências terríveis de seu legado. E, mais importante ainda, as duas faixas representam a fantástica abordagem de Ludwig Göransson: ser imponente sem ser alto demais, ser arrebatador sem ser explosivo, utilizando o violino como instrumento central de uma orquestra minimalista que nos faz sentir a catástrofe através da intimidade… em uma junção perfeita de narrativa e música, ou narrativa musical, se me permitem dizer, porque o que o compositor faz, aqui, é contar uma história.
Oppenheimer: Original Motion Picture Soundtrack
Compositor: Ludwig Göransson
Gravadora: Back Lot Music
Ano: 2023
Estilo: Trilha Sonora
Duração: 94 min.