- Há leves spoilers.
Onibaba desafia classificações. Pode ser visto como um filme de horror, como uma drama de época, como um thriller sensual, mas esses rótulos são meramente formais e, inescapavelmente, reducionistas. O longa que Kaneto Shindô filmou ao longo de três meses em um pântano de juncos real nos arredores da província de Chiba, no Japão, fazendo com que sua equipe completa vivesse praticamente como os personagens retratados na obra – e sob ameaça de não receber os salários e cachês se abandonassem a produção antes do final – é um assalto sensorial cujo melhor adjetivo que encontrei para descrevê-lo é “inquietante”.
O cenário é somente mesmo o “mar” de juncos que divide espaço com o vento constante que criam belíssimos, mas também assustadores balés naturais que o diretor usa de imediato para abrir seu filme, com dois samurais sendo perseguidos e mortos por duas mulheres que, ato contínuo, tiram todo o equipamento e armas da dupla, jogam os corpos em um buraco misterioso e trocam o butim por comida com um comerciante local que vive em uma caverna. Passado durante o século XIV, quando o Japão passava por uma interminável guerra civil, Shindô deixa bem evidente a miséria que as duas mulheres sem nome – uma de meia-idade, outra jovem, a primeira a sogra da segunda – vivem diariamente, não tendo o que comer e dormindo em cabanas encrustadas em meio ao junco ainda mais alto que ela.
Em meio a esse horror real e perturbador, eis que as duas são surpreendidas por um faminto Hachi (Kei Satō), vizinho delas que deserdou da guerra juntamente com o filho da mulher mais velha, que é o marido da mais nova, e que traz a notícia que seu colega morrera. O luto leva a jovem aos braços de Hachi e a mulher mais velha a agarrar-se à nora de tal forma que ela inadmite o romance. Na verdade, romance é eufemismo meu, pois o que os dois têm é sexo basal, selvagem, completamente inevitável, algo que o diretor deixa claro pela locomoção da jovem até a cabana do amante: correndo a toda velocidade em meio ao junco com uma trilha sonora que amplifica o desejo irrefreável. É impressionante como Shindô consegue fazer tanto com tão pouco, ajudado, claro, pela impressionante fotografia em preto e branco de Kiyomi Kuroda que cria uma atmosfera que é ao mesmo tempo assustadora e irresistível.
Enquanto os amantes transam constantemente, em tese em segredo (que, claro, inexiste neste cenário espartano), a mulher mais velha, consumida por uma mistura de raiva e ciúmes, é visitada por um samurai que usa uma bizarra máscara de demônio que, não demora, se torna instrumento para barrar o suposto “adultério”, algo que o roteiro de Shindô retirou de uma parábola budista. Existem aí as mais diversas simbologias, claro, com a imagem do demônio personificando o pecado perpetrado pela jovem ao trair o marido morto e abandonar a sogra, assim como o peso da culpa que ela pouco sente e, no lado da mulher mais velha, uma maneira de castigar a nora e honrar seu filho. Mas a máscara cobra seu preço também e o demônio se volta contra quem o manipula, em uma reviravolta narrativa que é bem construída pelo roteiro e que dá o encerramento digno – e completamente aberto – ao drama das duas mulheres.
No entanto, a grande verdade é que a história carece de conteúdo que justifique a duração da fita. Shindô, talvez para justificar o que podemos basicamente chamar de castigo que ele impôs ao elenco e à equipe ao realocar todo mundo para a locação remota onde decidiu filmar, peca ao repetir por vezes demais os movimentos que ele estabelece de imediato. É o assassinato e roubo de samurais ocupando talvez muito tempo de tela, assim como a atração quase animal entre a jovem e Hachi é repetida e retrabalhada algumas vezes. Curiosamente, ao fazer isso, o cineasta acabou “empurrando” o encontro da mulher mais velha com o samurai mascarado e tudo o que decorre daí para um canto apertado e corrido de seu longa, em um clássico exemplo de muita preparação para pouco desfecho.
Mas Onibaba prende o espectador pela atuação visceral de Nobuko Otowa como a mulher mais velha, a atmosfera imbatível criada basicamente com vegetação, vento e a trilha sonora poderosa de Hikaru Hayashi, a originalíssima maneira que o cineasta encontrou para representar o sexo reprimido e, depois, aliviado, e as imagens fantasmagóricas do “demônio” moralista e egoísta que tenta desfazer tudo. A miséria das vítimas silenciosas da guerra ganha uma incrível alegoria quase sobrenatural.
Onibaba – A Mulher Demônio (鬼婆 – Japão, 1964)
Direção: Kaneto Shindô
Roteiro: Kaneto Shindô
Elenco: Nobuko Otowa, Jitsuko Yoshimura, Kei Satō, Taiji Tonoyama, Jūkichi Uno
Duração: 103 min.