O comentário mais profuso que ouço sobre esse filme de Abbas Kiarostami discorre sobre sua capacidade de inovar a ideia de um épico, na medida em que adota a estrutura literária de uma jornada hercúlea para transmitir valores morais significativos, ao mesmo tempo em que acrescenta sobriedade à fórmula. Em parte, isso é verdade. O nosso Ulisses da vez é o garotinho Ahmed – seu olhar imaculado guia as impressões da câmera do diretor desde o primeiro confronto com a principal força antagonista do enredo: o professor rígido e intransigente que precisa cobrar de seus alunos a postura adequada dentro da sala de aula. Nós, os convidados de Ahmed, que primeiro espiamos a agitação das crianças durante vários segundos através de uma brecha na porta da sala, não conseguimos preservar o olhar distante e racional que provavelmente minimizaria o problema essencial do roteiro.
A câmera intrépida do diretor nos coloca de cara com os meninos em seu momento de aflição. Seus menores problemas ganham força – o fato de que um garoto não fez o dever de casa por não ter tido acesso ao seu caderno, somado a imediata consequência de que ele será punido por isso, se torna a maior das injustiças do mundo. Nematzadeh chora incontrolavelmente, ele não merece aquilo que está sendo infligido a ele. A baixíssima profundidade de campo da fotografia do filme confere a seu sofrimento dimensões humanas que agora parecem indissociáveis da situação. A autoridade de um professor, embora insignificante para um espectador adulto, é o primeiro contato de uma criança com a necessidade de obediência e disciplina fora de sua casa, e o diretor nos faz enxergar isso muito bem.
Embora o professor dê a Nematzadeh uma chance para se redimir e entregar a tarefa, Ahmed acaba levando seu caderno com ele, privando o amigo da capacidade de cumprir com suas obrigações. Temos assim o ponto de partida dessa aventura, em que Ahmed tentará encontrar seu amigo e devolver o caderno para ele.
A simplicidade dessa premissa não faz justiça à complexidade dos temas que trata. Aliás, faz justiça sim, no sentido de que a abordagem de Kiarostami é densa sem perder a capacidade de sintetizar grandes questões com poucos recursos de linguagem e roteiro. Da mesma forma, a jornada de Ahmed é intensa, catártica e transformadora sem que, para isso, haja algum tipo de ameaça grande a ele ou as pessoas a sua volta. Na verdade, ao contrário de uma estrutura de causa-efeito que conferiria a trama uma elevação dramática mais facilmente transmissível, o roteiro se constrói a partir de uma série de desencontros e acasos que jogam gradualmente o menino em ocasiões desimportantes para o desenvolvimento da história.
É muito claro que algumas circunstâncias do filme em nada contribuirão com o objetivo de devolver o caderno para Nematzadeh, o que se alia ao desfecho final da busca de Ahmed para nos deixar numa posição de angústia, inconformados com o desamparo de nosso Sísifo que vai e volta da cidade onde mora seu amigo sem que encontre qualquer sombra de seu paradeiro. Kiarostami claramente assistiu a muitos filmes neorrealistas antes de escrever Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, ainda que a profundidade de sua posição filosófica não seja encontrada nem mesmo nos filmes de Vittorio De Sica. O encontro desse espectro do cinema iraniano com a realidade é uma espécie de desafio afrontoso ao que os italianos concebiam como um cinema fiel “àquilo que acontece de fato”.
Não é obra do acaso que esse filme entrou numa espécie de relação íntima e obscena com a própria realidade, em que os acontecimentos decorrentes das filmagens serviram de inspiração para uma trilogia que ficaria conhecida como a Trilogia de Koker, nomeada em virtude do vilarejo onde a ocorreu a produção dos três filmes. E todos esses elementos transgressores ganham propósito nos minutos finais, dada a maneira como os conflitos são solucionados. Tudo acaba se encaixando num resultado sensível, impactante e que não custa para deixar o espectador em um estado de reflexão impossível nas mãos de um realizador menos consciente de seus recursos.
Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?) – Irã, 1987.
Direção: Abbas Kiarostami.
Roteiro: Abbas Kiarostami.
Elenco: Babek Ahmed Poor, Ahmed Ahmed Poor, Kheda Barech Defai, Iran Outari, Ait Ansari, Sadika Taohidi, Biman Mouafi, Ali Djamali, Aziz Babai, Nader Ghoulami, Akbar Mouradi.
Duração: 83 min.