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Crítica | Oito Cartões-Postais da Utopia

O espantoso mundo da propaganda pós-socialista na Romênia.

por Luiz Santiago
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Oito Cartões-Postais da Utopia (2024), é um documentário-colagem que explora o estranho, fascinante, hilário e muitas vezes inacreditável mundo da propaganda pós-socialista na Romênia. Assinado pelo cineasta romeno Radu Jude, em parceria com o filósofo Christian Ferencz-Flatz, o longa utiliza apenas imagens de arquivo de propagandas exibidas nas décadas de 1990 e 2000, criando um mosaico fragmentado da transição do país do socialismo para o capitalismo, reforçando fetiches consumistas, brincando com o imaginário histórico e cômico da população e transmitindo uma mensagem de grandeza, avanço, “melhores dias” e prosperidade que não se pode comprovar na realidade nacional, aspecto onde reside a ironia crítica pretendida pelos diretores. 

Os traços cômicos, o flerte com o absurdo, a ousadia e perspicácia que vemos com recorrência nos filmes de Radu Jude aparecem aqui ao longo dos oito capítulos centrais e do epílogo, tomando mais um tema contemporâneo em discussão e o colocando sob a ótica do marketing agressivo e utópico das marcas, criando uma pseudo-distopia kitsch que nos faz rir de nervoso. Abordando diferentes aspectos da vida cotidiana e fazendo leituras nas entrelinhas do que uma propaganda pode comunicar ao público, os diretores repetem a mesma peça publicitária em diferentes capítulos, aplicando-lhe um sentido diferente, mas comprometendo o frescor da obra, que já sofre com sua característica de repetição. É bom lembrar que, para Radu Jude, este não é um território novo: ele já trabalhou diretamente com material histórico e de arquivo no excelente A Saída dos Trens (2020), de modo que não tem como dizer que este foi um “treino cinematográfico”.   

A curadoria da fita promete uma imersão ácida no período histórico retratado, funcionando como crítica à venda de uma grande variedade de produtos ruins e/ou viciantes, e também como viagem nostálgica para o público, seja através do tom e mensagens da publicidade veiculada na TV dos anos 1990 e 2000, seja através dos produtos em si, como celulares gigantes, pagers e outras tecnologias hoje consideradas ultrapassadas. A execução dos cineastas para tudo isso carece de coesão e força narrativa por depender apenas das cartelas indicando os capítulos e uma montagem com cortes bruscos das propagandas, muitas vezes sem a piadinha final, tornando muitos blocos um verdadeiro mistério quanto à sua função discursiva. 

O filme evoca a atmosfera quase surreal e contraditória da Romênia pós-socialista, com uma justaposição de imagens televisivas de alegria ou prosperidade à realidade de um país em transformação, trazendo para a linguagem de comunicação do capital o espírito do mercado planificado da qual a República acabara de sair. O resultado, nesse recorte, é impagável, gerando um comentário perspicaz sobre a construção de narrativas ideológicas. O sarcasmo com que os cineastas tratam a mitologia do consumo está o tempo inteiro em evidência, mas é fragmentado e incompleto. Entendo que, por ser uma colagem, essa fragmentação estaria na obra de qualquer jeito; contudo, sua execução impede uma crítica melhor articulada, agravada pela falta de uma maior e melhor contextualização histórica (e não, apenas a linha de resumo sobre o espaço-tempo do filme não é o bastante para um bom contexto histórico), muitas vezes deixando o espectador rindo das bobagens de uma propaganda, após ficar à deriva diante de imagens desconexas.

Para um admirador do trabalho de Radu Jude, como eu, Oito Cartões-Postais da Utopia é uma experiência frustrante. Existe por trás dele uma ótima ideia e uma curiosa abordagem de experimentação visual, no entanto, a falta de coesão em diversos aspectos narrativos, as escolhas pouco compreensíveis da montagem ao longo da fita e a superficialidade geral da unidade (em seu aspecto de análise, de defesa de uma tese e de um ponto crítico com começo, meio e fim) impedem que a obra atinja todo seu potencial. A sensação que fica é a de um projeto inacabado. Afirmo que é um documento histórico valioso, mas sua contribuição para o debate sobre a transição pós-socialista na Romênia, via propagandas de TV nos anos 1990 e 2000, está muito abaixo do que nos prometeu ser.

Oito Cartões-Postais da Utopia (Opt ilustrate din lumea ideală) — Romênia, 2024
Direção: Christian Ferencz-Flatz, Radu Jude
Roteiro: Christian Ferencz-Flatz, Radu Jude
Elenco: (atores das propagandas exibidas)
Duração: 71 min.

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