SPOILERS!
Vivemos em um tempo no qual o gênero do terror vem sendo palco de debates acerca de sua terminologia própria. Pós-terror, terror psicológico, terror atmosférico: todos buscando compreender a crescente de filmes que tentam explorar o terror de uma suposta maneira mais inventiva. É razoável salientar, no entanto, que por mais que haja tal movimento de nova categorização de supostos subgêneros de terror, que tal movimento não passa de mero capricho – ou gourmetização como dizem as redes sociais. A verdade é que desde os princípios do gênero já existiam obras que se encaixam perfeitamente na descrição feita hoje. Por que, então, há a necessidade de rotular filmes realizados hoje? Parece que a designação de nomes específicos para a produção é um modo de elevação cultural dos produtos que, muitas vezes, sequer apresentam grandes novidades. Como, no entanto, esse breve debate pode se relacionar com Oferenda ao Demônio? O lançamento dirigido por Oliver Park tem em si um sério problema: querer ser algo além do que é.
Art, filho de um legista judeu, volta para sua casa de infância junto de sua noiva grávida Claire para se reconciliar com seu pai Saul. O retorno do filho à casa ocorre em meio a um pânico na comunidade judaica da cidade: uma jovem garota judia está desaparecida. Saul é agente funerário e possui em sua casa um necrotério exclusivo para judeus. Lá, junto de um corpo, um importante e maligno artefato guarda um mal poder capaz de afetar não apenas a família de Saul, mas toda a comunidade. A visita de Art, ainda, revela ter um motivo menos digno: está buscando colocar a casa de seu pai à venda para conseguir pagar seus credores.
O início do filme é extremamente promissor: de imediato já somos lançados àquilo que parece ser um ritual de poderosa magia realizado por um rabino. Com uma mise en scène metodicamente calculada, além de sermos jogados em uma situação catártica, tomamos a dimensão de algo grande estar sendo feito pelo personagem. As leituras dos passos do ritual, o amuleto, a faca sacrificial: todos esses elementos recebem a devida atenção nos primeiros minutos da obra. A construção da diegese do filme é simples, mas extremamente efetiva; não caminha por nenhum minimalismo desnecessário ou coisa do gênero. Estamos vendo, com devido cuidado, um ritual que, em tese, promete ser o motor do filme de Oliver Park. A cena não é longa, por mais que a partir da descrição possa dar a entender que sim: é uma abertura que dura em torno de no máximo dez minutos. Definitivamente, minutos bem aproveitados pelo diretor.
Depois disso, infelizmente, tudo parece se arrastar. Os próximos quarenta ou cinquenta minutos parecem horas. Toda a atmosfera construída na cena de abertura simplesmente destoa do restante. Nesse meio tempo, Park parece estar mais preocupado em estabelecer relações familiares como seu centro dramático. Parece uma tentativa de emular Hereditário, no qual os problemas entre a família são atravessados pelo terror sobrenatural – uso o filme de Ari Aster não como exemplo positivo, apenas como exemplo. A única questão familiar de Oferenda ao Demônio que poderia vir a ter um impacto imediato em sua estrutura dramática é a gravidez de Claire. Quando um estudioso em demonologia judaica afirma para Saul que a entidade com a qual estão lidando é um demônio que tira a vida de crianças, havia luz no fim do túnel. Mas, novamente, tudo se volta para a dinâmica entre Saul, seu amigo Heimish e Art, tornando a obra mais enfadonha.
Uma coisa ou outra de alguma cena ainda há de ser recuperada. No entanto, uma cena específica chama a atenção como se resumisse os problemas de Oferenda ao Demônio. Em seu necrotério, Saul é, repentinamente, confrontado pelo demônio que assombra sua família. A porta de entrada do local é aberta a fórceps e as luzes começam a flickar. Num jogo intenso de chiaroscuro, uma silhueta meio animalesca meio humanoide é vista. Ela se aproxima. Então, tudo fica escuro – um clássico truque que precede um jumpscare – e quando a luz se acende o braço da entidade entra em quadro e vai na direção de Saul. É no mínimo estranha a posição estética de Park nesse sentido porque 1) não há nenhum indício de desdramatização ou subversão do terror em si e 2) a sequência perde toda sua potência em prol de absolutamente nada. A cena é um reflexo claro do panorama geral do filme: há uma tendência de apostar em um aparente minimalismo, dando mais ênfase na tentativa de construção de atmosfera aterrorizante como carro chefe da obra. Pode ser compreendido como um sinal de nossos tempos. Terror atmosférico, pós terror. São no mínimo proposições que não levam o debate do gênero a lugar algum. E ao mesmo tempo dão a entender que apenas as obras que tenham essas qualidades devem ser exaltadas. Isso, por fim, é capaz de cercear a capacidade criativa de diretores, a exemplo de Park. Claro, há nele uma enorme parcela de culpa, mas cabe compreender o todo antes de falar do específico.
Em uma das últimas cenas do filme, Art trava uma batalha com o demônio que, finalmente, parece ter atacado o bebê de Claire. Na sequência, o protagonista fica preso em uma espécie de transe, que o mantém em um looping temporal. Com o uso de vários falsos raccords, Park constrói uma sequência digna de Feitiço do Tempo – sim, uma cena cômica. É um trabalho árduo tentar defender as escolhas estéticas do diretor. Nada parece se encaixar e junto disso o drama familiar enfadonho também não colabora. Na última cena, aí sim, podem ser notadas qualidades na direção. No enfrentamento final com o vilão, Oliver Park monta uma mise en scène caótica, com movimentos de câmera pouco usuais, uma decupagem caótica sempre picotada por cortes que não seguem a cartilha clássica e um excelente trabalho de coreografia do elenco. Esse bom conjunto de elementos é o que faltou ao longo de toda a duração de Oferenda ao Demônio. Seja por falta de personalidade ou pressão para se enquadrar em terminologias inconvenientes, a verdade é que o filme é uma grande bagunça que peca por fazer o mínimo.
Oferenda ao Demônio (The Offering) – EUA, Bulgária, 2022
Direção: Oliver Park
Roteiro: Jonathan Yunger, Hank Hoffman
Elenco: Allan Corduner, Paul Kaye, Nick Blood, Emm Wiseman, Jonathan Yunger, Daniel Ben Zenou, Nathan Cooper, Velizar Binev, Sofia Weldon, Boyan Anev, Jodie Jacobs, Yonki Dimitrov
Duração: 93 min.