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Crítica | Obrigado, Jeeves, de P. G. Wodehouse

por Luiz Santiago
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A série literária Jeeves e Bertie (ou apenas Jeeves) deu o seu primeiro passo, ainda um pouco tímido, em 1915, no conto Libertando o Jovem Gussie, publicado originalmente pelo elegante escritor britânico P. G. Wodehouse nas páginas do Saturday Evening Post (EUA). Depois desse momento inicial, o engenhoso e espirituoso mordomo Reginald Jeeves e seu impulsivo e atrapalhado patrão Bertie Wooster apareceram em 4 coletâneas de contos, a saber, Meu Caro Jeeves (1919), O Inimitável Jeeves (1923), Prossiga, Jeeves (1925, onde temos a hilária história A Carreira Artística de Corky) e por fim, Muito Bem, Jeeves (1930). Quatro anos depois desta última publicação, Wodehouse lançou o primeiro romance da série, intitulado Obrigado, Jeeves, uma pequena joia cômica da literatura britânica que a gente não sabia que precisava ler… até ter lido.

E tudo começa com um banjo ukulele (ou banjolele). Bertie está aprendendo a tocar esse instrumento e, ao que parece, anda fazendo o inferno na cabeça de todos à sua volta, incomodando os vizinhos e ao próprio Jeeves, que pede demissão porque o patrão quer se mudar para uma casa no campo a fim de seguir tocando seu instrumento sem ouvir reclamações (o maior exemplo do quão mimado e birrento é Bertie). É nessa mudança temporária e na separação entre Bertie e Jeeves que temos os maiores elementos cômicos da história postos em cena, reforçados pela chegada de um velho amigo de faculdade de Bertie, Lorde “Chuffy” Chuffnell, que temperará o lado romântico da obra.

Considerando a história como um todo, o que temos aqui em Obrigado, Jeeves é uma simples comédia de erros revestida de luta entre interesses amorosos, sexos e classes, basta levarmos em consideração a intenção de compra e venda de uma certa propriedade e a real situação financeira de alguns personagens aqui. Mas no meio desse esqueleto simples temos uma finíssima construção de diálogos e situações de encontro entre os personagens pelos quais é absolutamente impossível não se sentir atraído. Há uma boa dose de ironia na forma como Wodehouse arquiteta essas falas, e elas tanto podem ser a conversa entre dois personagens quanto um diálogo de um indivíduo consigo mesmo, tendo direito aí a discussões e contestações bem acaloradas, tornando o absurdo ainda mais engraçado.

Um aspecto do livro pode trazer grande desagrado para alguns leitores contemporâneos, especialmente os que ignoram o contexto e o espaço geográfico/cultural de produção de uma obra, é um certo tratamento simbólico-racial em sua segunda metade. Livro britânico de 1934, Obrigado, Jeeves usa termos e apresenta situações engraçadas que, na época, não tinham o peso de preconceito que temos na atualidade. Este é o caso das cenas com blackface e o uso do termo negrinho/negro, que mesmo não recebendo nos Estados Unidos dos anos 30 o peso negativo e racista que recebe hoje, já não era bem visto.

A colocação de Wodehouse, no entanto, não é racista em sua construção, nem no uso dos termos e nem na forma de apresentar os homens brancos com a cara pintada de tinta preta. Isso não significa, todavia, que ela é essencialmente positiva. A comédia ganha aquele tom paternalista e estereotipado (ambas tags condenáveis) que marcava o pensamento europeu da época em relação aos não-europeus ou a qualquer outra etnia não branca, de modo que o leitor realmente precisa compreender o contexto dessa produção e ler com a atenção as cenas onde o autor ergue a saga de Bertie com a cara pintada para apreciar de verdade o livro a partir desse ponto.

A ação basicamente evolui para uma dificuldade maior de locomoção do personagem do que qualquer outra coisa. Não há um elemento de pura ridicularização ou segregação aqui, e mesmo a cena mais “abertamente condenável” nessa seara, onde o novo valete de Bertie pega uma faca e fica de tocaia na porta porque acha que Bertie de blackface é o diabo, está claro o sentido abobalhado dado pelo autor a esse tipo de exposição. No mais, ainda vale dizer que as relações interraciais no Reino Unido nunca foram sequer minimamente comparáveis, no território nacional, àquelas que os americanos brancos tinham (e têm!) em relação aos afroamericanos, daí a polêmica reforçada que esse livro traz até hoje — apesar de o uso do blackface ser discutido em ambientes fora desse espaço social e cultural.

Obrigado, Jeeves nos presenteia com uma afiada coletânea de conversas e solilóquios, com situações absurdas, burguesas, desconectadas da realidade, propositalmente infantilizadas e genuinamente engraçadas, algumas delas lembrando vários trabalhos de mestres do humor do cinema silencioso (só para ter um conhecido marco visual de comparação). Um romance que nos faz rir, nos retira da realidade e nos faz pensar e viver temporariamente num mundo de faz-de-conta, que muitos livros, pelo seu caráter profético e profunda relação com os tempos em que vivemos, não nos proporcionam mais. Uma obra gostosa para ler, rir e, de bom grado, “desligar o cérebro“.

Obrigado, Jeeves (Thank You, Jeeves) — Reino Unido, 16 de março de 1934
Autor: P. G. Wodehouse
Edição lida para esta crítica: Cornerstone Digital (2009)
292 páginas (Kindle)

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