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Crítica | Os Náufragos do Wager: Uma história de Motim e Assassinato, de David Grann

Relatos conflitantes de uma história real.

por Ritter Fan
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David Grann, jornalista americano que enveredou por livros não-ficcionais investigativos de tempos pretéritos como Z, a Cidade Perdida, adaptado para o cinema por James Gray e Assassinos da Lua das Flores, levado às telonas por Martin Scorsese, vai ainda mais para o passado em Os Náufragos do Wager: Uma história de Motim e Assassinato que relata a história do HMS Wager, navio britânico de guerra que foi a pique no dia 13 de maio de 1741 em uma ilha desabitada na Patagônia que hoje leva seu nome. Não é o primeiro livro sobre a viagem amaldiçoada e os eventos posteriores, mas o autor, como é seu estilo, destila uma narrativa complicadíssima, repleta de relatos conflitantes, em uma história que navega eficientemente entre o que poderia muito bem ser uma aventura ficcional e uma abordagem jornalística a partir de um olhar moderno.

A referida embarcação, originalmente um navio comercial armado da Companhia das Índias Orientais que, depois de comprado pela marinha real britânica, foi retrofitado como um pequeno navio de guerra da chamada 6ª categoria, com apenas 28 canhões, e batizado em homenagem ao Almirante Charles Wager, fez parte da esquadra comandada pelo Comodoro George Anson em uma expedição com o objetivo de atacar navios e assentamentos espanhóis na América do Sul no começo da Guerra da Orelha de Jenkins. Depois de sofrer com uma epidemia de tifo seguida da devastadora chegada do escorbuto, o frota já chegou enfraquecida ao temido Cabo Horn e foi lá que o Wager acabou irremediavelmente preso em rochedos, naufragando e deixando o que restou de sua tripulação na inóspita ilha de uma baía então desconhecida pelos europeus. No entanto – e é aí que o mistério se torna realmente interessante e é assim que Grann começa o livro – sobreviventes famintos chegaram meses depois ao Rio Grande, no litoral do Rio Grande do Sul, no Brasil, sendo festejados como heróis tanto aqui quanto na Inglaterra, somente para, alguns meses depois ainda, outros sobreviventes, em quantidade bem menor, chegarem ao Chile contando uma história bem diferente.

Apesar de ser um evento histórico muito bem documentado na época, essa documentação é quase que exclusivamente composta de diários de sobreviventes, especialmente os do experiente artilheiro John Bulkley e do jovem aspirante John Byron (que viria a ser o avô do poeta George Byron, mais conhecido apenas como Lord Byron), além das transcrições da Corte Marcial estabelecida na Inglaterra anos depois do acidente, com alegações de motim, assassinato e incompetência do capitão David Cheap, alçado ao cargo em meio à viagem em razão da morte do capitão original, Dandy Kidd. O que David Grann faz, então, é costurar uma narrativa que, depois de contextualizar a expedição e o próprio navio, sustenta e equilibra os dois lados da trágica história, ao mesmo tempo em que fornece sua visão cínica do ocorrido, repleta de comentários sobre o imperialismo britânico da mesma forma que ele critica o massacre indígena pelo governo americano em seu livro anterior sobre a tribo Osage.

Em outras palavras, a frieza e objetividade (ainda que, claro, com viés subjetivo) de diários tornam-se matéria prima para uma interessantíssima história que é razoavelmente pouco conhecida do publico em geral e que, na visão de Grann, considerando o resultado da Corte Marcial, é um exemplo de como Impérios são mantidos. Mas, assim como acontece em Assassinos da Lua das Flores, o autor tenta atacar talvez frentes demais ao mesmo tempo. Afinal, ele não só precisa lidar com as narrativas conflitantes e com o julgamento, como também com os demais aspectos que ele faz questão de abordar, especialmente o contexto histórico do imperialismo britânico, o que resulta em uma obra que é apenas introdutória em diversos aspectos.

Claro que Grann conta uma história completa, ainda que baseada em visões opostas que ele faz convergir de maneira muito fluida, ainda que deixando o leitor decidir que lado adotar. No entanto, no que diz respeito à História – a com H maiúsculo mesmo -, sua abordagem é consideravelmente rasa, com apenas leves pinceladas sobre a guerra entre Inglaterra e Espanha, o imperialismo das duas potências da época e o comércio de pessoas escravizadas. Por vezes dá a impressão que o comentário crítico é o que mais importa para Grann, mas esse comentário crítico acaba diluído e enfraquecido pelo detalhamento que ele oferece sobre o naufrágio e o que ocorreu depois, quase como se ele estivesse se sabotando.

Tenho perfeita consciência, porém, sobre como deve ser complexa a pesquisa feita – Grann foi até a Ilha Wager pessoalmente! – e como deve ser difícil extrair a essência de todo o material sobre o qual ele se debruçou, mas meu ponto sobre o livro é que, se autor realmente queria fazer comentários com bons efeitos para o leitor, não poderia deixar sua visão anti-imperialista quase que como reflexões enxertadas posteriormente no livro. Ficou parecendo que o que Grann realmente queria fazer era deixar claro para o leitor sua visão politicamente correta sobre as atrocidades cometidas pelos referidos impérios, mas sem se comprometer muito. Obviamente que um comprometimento maior de Grann com sua crítica exigiria, possivelmente, um livro razoavelmente mais longo e mais complexo, e tenho para mim que ele escreve para cirurgicamente tornar suas obras mais palatáveis e digeríveis para o maior público possível, o que é um equilíbrio por vezes perigoso.

Seja como for, a história do HMS Wager – ou, melhor dizendo, as histórias – é inegavelmente fascinante e David Grann realmente consegue fazer mágica ao contá-la quase que como um romance de não-ficção. A leitura é fluida, rápida e ele consegue ao mesmo tempo satisfazer a curiosidade de quem pouco ou nada conhece sobre o naufrágio e deixar o leitor com vontade de pesquisar mais detalhes sobre o ocorrido, até mesmo caçar os diários que foram publicados em forma de livro no século XVIII. Ele realmente só peca quando, ao tentar dar uma dimensão mais ampla ao caso, acaba simplificando demais a história macro, mas isso talvez faça parte do jogo hoje em dia necessário para tornar uma obra desse tipo em um bestseller literário.

Os Náufragos do Wager: Uma história de Motim e Assassinato (The Wager: A Tale of Shipwreck, Mutiny and Murder – EUA, 2023)
Autor: David Grann
Editora original: Doubleday
Data original de publicação: 18 de abril de 2023
Editora no Brasil: Companhia das Letras
Data de publicação no Brasil: 26 de março de 2024
Páginas: 352

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