É um bocado engraçado quando nos acostumamos tanto a uma espécie de filme que, quando ele é pensado de uma maneira completamente heterodoxa, entramos em negação. Onde quero chegar com isso? Bom, aposto que todo mundo que já assistiu uma quantidade considerável de filmes deve ter se deparado com a classificação coming of age; isto é, histórias carregadas de uma jornada de amadurecimento, em sua maioria (ou completude) protagonizadas por jovenzinhos bonzinhos, ou então levemente transgressores. Boa parte deles não possuem tantas diferenças em abordagem; não possuem, de fato, se você ainda não assistiu O Vídeo de Benny.
Benny (Arno Frisch) é um garotinho obcecado com filmagem, mantendo um complexo sistema de registros autorais e de filmes hollywoodianos, pelos quais ele possui um relacionamento quase íntimo. Estafado de sua alienação da realidade, Benny comete, por impulso, um assassinato, gravando-o para seus pais como uma confissão.
Nesse filme, o diretor relata o encontro angustiante de um menino com a realidade; Haneke comunica muito bem isso através das filmagens handheld, todas categorizadas pela qualidade diminuta da câmera de Benny; uma vez estabelecida a obsessão do garoto pelo registro constante de sua rotina, o recurso torna-se um paralelo à forma como ele enxerga a realidade – esse recurso inclusive desempenha um papel fundamental no desfecho final, que para alguns pode parecer abrupto ou inexplicável; além disso ele exerce, também, uma ferramenta de entendimento nevrálgica para a atitude mais grave que o protagonista toma na história – a do assassinato.
Em algumas dos momentos em que vemos, literalmente, os vídeos de Benny, a catarse narrativa é otimizada por uma trilha sonora atmosférica, intimidadora e, ao mesmo tempo, intimista; à medida que tudo presente nessas vídeo tapes é um espelho para a cabeça de Benny, a trilha sonora possui uma importância indispensável, brilhantemente desempenhada – ressalto a primeira cena do filme. A direção de Haneke também trabalha bem com algumas rimas visuais; a antítese presente numa comparação entre duas cenas, mesclada à óbvia e proposital semelhança da abordagem cinegráfica, ressalta à análise comportamental proposta pelo filme de uma forma muito versátil.
Em méritos sintagmáticos, o roteiro é excelente. Existe um detalhe sensacional que diz respeito à janela do quarto de Benny que é sobressalentemente bem pensado, ajuda a definir a psicologia do protagonista e dá um prosseguimento orgânico à uma história repleta de quebras dramáticas excepcionalmente intensas. Ainda nesse mérito, a mudança do quarto de Benny no final do filme funciona muito bem semanticamente, dando peso ao final controverso da narrativa. Entre outras conquistas, o roteiro também é muito eficiente em dar razão do assassinato, que, por ser uma medida tão extrema, precisava de uma construção dramática mais diligente – não é a toa que o acontecimento só ocorre depois de muitos minutos; A relação de Benny com Mädchen (Ingrid Stassner) é outra coisa extremamente bem pensada, como personagens, os dois se assemelham profundamente; Madchen é aquilo que Benny teme ser, e o assassinato parece ser uma saída prática para isso.
Meu problema com o filme é bastante pontual, além de se tratar de uma trivialidade. Eu não consigo deixar de pensar que a viagem ao Oriente, de Benny com sua mãe, é uma extrapolação. Sua função narrativa é completamente compreensível, Benny precisava entrar em contato com a realidade ingrata para a qual ele está completamente alienado; o excessivo uso dos, já mencionados, POV’s de Benny funciona muito bem nesse sentido e a paleta de cores mais vibrante destoa instrumentalmente do filme. As implicações dessa decisão, porém, são de que o filme fica erístico demais e até patente. No caso de uma função narrativa menos importante, certamente não pularia tanto aos olhos o exagero de Haneke, mas nesse caso é um descompromisso não menciona-lo e considera-lo.
O Vídeo de Benny é um coming of age heterodoxo, surpreendente, brilhantemente perturbador e muito bem estruturado narrativamente.
O Vídeo de Benny (Benny’s Video) – Áustria, 1993.
Direção: Michael Haneke.
Roteiro: Michael Haneke.
Elenco: Arno Frisch, Angela Winkler, Ulrich Mühe, Ingrid Stassner, Stephanie Brehmer, Stefan Polasek, Christian Pundy, Max Berner, Hanspeter Müller, Shelley Kästner.
Duração: 105 min.