Devo admitir que ainda é difícil deixar o preconceito com a Netflix de lado. Não que seja uma preconcepção sobre qualidade ou coisa que o valha, mas só nos últimos tempos que vem sendo possível dissociar o logo da empresa de certo gênero de filme, que tem como alvo certo público e que pretende certas intenções. Bom, esse filme, entre outros, tem grande participação nessa desconstrução.
O enredo se desenrola a partir da perspectiva de Anabel (Susi Sanchez), uma mulher de idade e bem sucedida que é surpreendida pela demanda de Chiara (Bárbara Lennie) – uma filha a muito tempo distante – de passar dez dias em uma convivência particular, sob causas e termos que ela mesmo desconhece. Algumas experiências da relação entre as duas são postas a tona, juntamente à surpresas impostas pela distância presente entre elas.
A direção e o roteiro são do Ramon Salazar, e ele é competente, apesar de irregular. Tudo começa legal, a falta de expositividade do princípio é elogiável, há uma mistério incitante a ser desvendado; toda a forma como o filme cria o incidente incitante é bem feito, apesar das decisões de certas personagens causarem um estranhamento não justificado pelo desenvolvimento da narrativa, a apresentação da estória ocorre sem grandes problemas. Por falar nelas, as personagens são boas em sua maioria; a protagonista tem um conflito contundente e bem evidenciado pela oposição entre os personagens secundários, ainda que um ou dois de seus coadjuvantes sejam puramente recursos pedestres que não acrescentam nada à discussão do filme e apenas sirvam para levar a trama de um lugar “a” para um lugar “b”. Nem todos os diálogos aqui são excelentes, alguns chegam a ficar incomodamente expositivos ou incrivelmente mal ritmados, mas de vez em quando Salazar acerta em cheio; principalmente logo no início, quando o confronto de Anabel e Chiara tem o seu cume de intensidade, o poder da sugestão nos diálogos é muito bem utilizado.
É notável que o filme pretende apresentar um crescimento paulatino na gravidade das situações, essencialmente pela manipulação que faz das informações. O que se pode dizer sobre isso é que o roteiro constrói as antecipações muito bem: há uma cena já nos primeiros minutos em que o comportamento de certa personagem parece puramente maquiavélico, mas que serve de base para o já mencionado agravamento das circunstâncias no desfecho; não me pareceu avulso, sendo, inclusive, o final, a parte onde o filme mais se destaca.
O trabalho bom que se faz no roteiro com as cenas é bem transmitido para a tela; existe uma escolha sonora na transição entre cenas que parece misteriosa e despropositada enquanto é utilizada, mas que baseia a melhor cena de todas do longa, e que por isso trata-se de um bom recurso; o contraste entre as duas personagens principais é bem feito, ainda por cima à medida que é notado também nas escolhas cinegráficas: a realidade mais brutal e caótica de Chiara – evidenciada inclusive na escolha de seu figurino – entra em confronto direto com os enquadramentos simétricos, formais e lúbricos utilizados quando a personagem se encontra deslocada nos ambientes que Anabel se sente mais confortável. É um trabalho, ao menos nesses méritos, bem feito.
No mais, é uma direção sem grandes destaques, inclusive porque encontra problemas em sua cinematografia; esses problemas se encontram principalmente no uso excessivo da manipulação focal, que quando é utilizada para destacar um movimento ou ação na mise-e- scène ajuda, mas que enquanto construção estética não apresenta qualquer propósito ou dialogismo narrativo; alguns enquadramentos também são, aqui ou ali, dessincronizados e danificam um bocado o desempenho da montagem, que se vê forçada a imprimir a tarefa ingrata de conversar cenas de abordagens dissonantes.
As atuações são, em quase sua completude, o ponto forte do filme. Bárbara Lennie entrega uma interpretação repleta de diferentes extremos emotivos; ela é a responsável pela maior carga dramática, pelas emoções mais pulsantes e demonstradas; não é preciso muito para que Chiara mude da água para o vinho, e isso é muito bem colocado pela cooperação entre a atriz e o diretor, tendo o resultado mais evidente disso no plano sequência da festa; a cena da xícara, também, vale o ressalte, porque a explosão retórica neurastênica da atriz é incrivelmente bem interpretada.
Contudo, ainda acredito que Susi Sanchez não esteja nada abaixo, apesar de ser um trabalho menos recompensado. Anabel é uma personagem que, pela sua composição, impede grandes explosões emocionais ou coisas semelhantes; ela é uma mulher complexada, cheia de recato, que tem poucas chances de se expressar; a forma como o olhar da atriz transmite de agonia à alegria, porém, justifica todos os impasses da protagonista. Um trabalho bom, exaltado pelos esporádicos momentos inspirados da trilha sonora. Um parêntese: tudo que envolveu brevemente Greta Fernandez e Richard Bohringer me incomodou fortemente, principalmente no caso da primeira que é absurdamente caricata.
La enfermedad del Domingo tem excelentes interpretações, mas é repleto de elementos narrativos irregulares e descompensados.
O Vazio do Domingo (La enfermedad del domingo) — Espanha, 2018
Direção: Ramon Salazar.
Roteiro: Ramon Salazar.
Elenco: Susi Sanchez, Bárbara Lennie, Greta Fernandez e Richard Bohringer.
Duração: 113 min.