Em 1985, um traficante de drogas fazendo transporte entre a Colômbia e os EUA jogou quase 35 quilos de cocaína por sobre um parque nacional no Tennessee para reduzir o peso do avião e um urso negro acabou morrendo de overdose depois de comer praticamente todo o carregamento. Essa é, resumidamente, a surreal história verdadeira que serviu de base para O Urso do Pó Branco, história essa que aparece nos primeiros minutos de projeção (com Matthew Rhys, o atual Perry Mason, fazendo ponta como o tal traficante) e que não tem nada da parte seguinte, ou seja, um urso enlouquecido matando todo mundo que vê pela frente.
Seja como for, a premissa é tão boa no estilo “mais estranho que ficção” que é até uma surpresa que ela só tenha sido transformada em filme quase 40 anos depois. Mas a grande verdade é que o longa dirigido por Elizabeth Banks não é nem de longe a obra que poderia ter sido ou que o público talvez realmente esperasse. Se, talvez, o canal SyFy tivesse bancado a produção para a TV de forma a fazer companhia para suas loucuras como a franquia Sharknado, o urso cocainômano assassino tivesse mais chances de alcançar seu potencial. Do jeito que ficou, o roteiro de Jimmy Warden acabou não só pouco inspirado, como repetitivo e a direção de Banks simplesmente não ousou o suficiente para fazer jus à premissa.
Tenho plena consciência de que O Urso do Pó Branco não é para ser levado a sério e o resultado nem é tão ruim assim, mas o filme é simplesmente domado e manso demais para realmente funcionar como a trasheira cômica repleta de sangue, tripas e drogas que talvez pretendesse ser considerando a classificação R (ou +18) que ganhou nos EUA e todo o marketing que foi feito em cima desses aspectos. O fiapo de história para além da premissa é básica e, portanto, poderia ter sido trabalhada de maneira muito mais maleável: uma série de pessoas, por razões diferentes, seja para achar a filha sumida, seja para recuperar as drogas, seja para prender os traficantes ou até mesmo para ter um caso amoroso, convergem para o parque florestal que foi batizado com as drogas e o urso doidão – na verdade, uma ursa – começa a trucidar todo mundo. Em outras palavras, havia todo o espaço do mundo para Warden e Banks soltarem completamente os freios e se aproveitarem de todas as bizarrices comicamente ultraviolentas possíveis.
Infelizmente, porém, não é isso que acontece. Aliás, sendo bem sincero, só há uma sequência estendida que consegue reunir os predicados que, se repetida de outras maneiras ao longo do restante da projeção, poderiam fazer do longa algo memorável. Falo de toda a sequência passada na cabana para aonde a guarda-florestal Liz (Margo Martindale sempre sensacional) foge em determinada altura do filme e que conta ainda com alguns delinquentes usuais do parque e uma dupla de paramédicos que chega para ajudá-los. Tudo, absolutamente tudo funciona nesses vários minutos do longa que gravitam ao redor dessa situação, com direito a uma combinação quase mágica de extrema violência e humor.
Mas o estranho é que mesmo contando com um elenco bem diverso para trabalhar, inclusive Ray Liotta em seu último papel como o traficante Syd que manda seu filho Eddie (Alden Ehrenreich) e seu melhor amigo Daveed (O’Shea Jackson Jr.) recuperar as drogas, Banks não consegue repetir o que faz com Margo Martindale e outros na cabana, seja antes ou depois dessa sequência. Aliás, quando o roteiro, depois dessa sequência, tenta transformar o fiapo de história em algo um pouco mais robusto, ele realmente começa a degringolar, criando quase inacreditáveis barrigas narrativas que, em um filme tão curto e com uma premissa tão esdrúxula, simplesmente não poderiam existir. Até mesmo a sequência climática na cachoeira é, além de longa e cansativa, muito mal filmada, como se Banks tivesse largado o estagiário do cafezinho no comando das filmagens.
Aos que perguntarão alguma bobagem tipo “o crítico estava querendo o que, O Poderoso Chefão?”, minha resposta, que vem depois de um suspiro e de rolamento de olhos é bastante simples: eu queria diversão descompromissada ao longo da maior e não da menor parte dos 95 minutos de projeção. O que Banks entregou é um filme que não consegue sequer chegar à altura baixa desse sarrafo, mesmo, em tese, tendo um bom grau de liberdade criativa para soltar a fera drogada contra seu rol de vítimas. Mas O Urso do Pó Branco talvez agrade alguns que estiverem tão doidões de hype quanto o bicho. Em minha sobriedade, apenas a referida sequência com Margo Martindale valeu o esforço. Quem sabe se, na inevitável continuação, Banks ou quem quer que seja que dirija o filme, não chuta de vez o balde para criar uma experiência cinematográfica que faça jus à premissa?
O Urso do Pó Branco (Cocaine Bear – EUA, 2023)
Direção: Elizabeth Banks
Roteiro: Jimmy Warden
Elenco: Keri Russell, Alden Ehrenreich, O’Shea Jackson Jr., Ray Liotta, Isiah Whitlock Jr., Brooklynn Prince, Christian Convery, Margo Martindale, Jesse Tyler Ferguson, Kristofer Hivju, Hannah Hoekstra, Ayoola Smart, Aaron Holliday, J.B. Moore, Leo Hanna, Kahyun Kim, Scott Seiss, Matthew Rhys
Duração: 95 min.