1377 versos brancos sem estrofe. Uma composição poética associada basicamente ao seu tempo histórico, sobre um acontecimento relativamente recente, uma novidade, de certa maneira, para o que se fazia em nossa literatura árcade. Cinco cantos, numa abordagem da luta dos portugueses e espanhóis contra os jesuítas e índios, comandados por tais representantes religiosos, o chamado Povo das Sete Missões, numa batalha que envolvia interesses territoriais que ressoavam dos interesses coloniais europeus no continente americano. Assim é O Uraguai, poema de Basílio da Gama, publicado em 1769, obra-prima do autor que antecipou a atmosfera nacionalista exaltada no esquema de produção romântica do século XIX. Era época do estabelecimento do Tratado de Madrid, de 1740, uma atualização dos combinados entre Portugal e Espanha diante da defasagem do Tratado de Tordesilhas, de 1500. Em linhas gerais, os acordos sobre posses de extensões territoriais entre as duas potências colonizadoras europeias.
Neste período, o ciclo econômico que nordestino deixava de ser o centro dos interesses da Coroa e abria espaço para a expansão da mineração em Minas Gerais e dos avanços urbanos e comerciais do Rio de Janeiro. Era natural, no entanto, que a produção literária destes espaços do mapa brasileiro ainda em formação ganhasse fôlego e destaque. Aqui, Basílio da Gama, poeta vinculado pela crítica ao que se convencionou chamar de Arcadismo, narra o Brasil sob o ponto de vista dos interesses de nossos colonizadores, numa escrita que foi considerada como destinada ao Marquês de Pombal, figura política renomada na época, responsável por quebrar elos com os jesuítas, numa crise com a seara religiosa dominante, a Igreja Católica. Perseguido durante algum tempo por questões que envolviam a sua postura como agente do discurso deste momento histórico, entre idas e vindas, Basílio da Gama se tornou um protegido do Marquês.
Assim, nada mais natural que escrever algo que exaltasse os valores colonizadores, numa composição poética considerada por muitos como épica, mas tida por Antônio Cândido, um dos maiores historiadores da literatura brasileira, como lírica, heroica e didática, mas não menos importante para o nosso cânone e talvez uma das produções mais poderosas de nosso sistema literário. Em O Uraguai, o escritor narra por meio de seu discurso ficcional, a Guerra da Guaranítica, o confronto que teve como estrutura a batalha mencionada na abertura deste texto. Em seu esquema de criação, Basílio da Gama delineou uma imagem negativa dos jesuítas, vistos como manipuladores, traçando um perfil dos indígenas como povo puro, com seus valores específicos, passíveis de compreensão neste conflito bélico ficcional descrito por meio de versos que, novidade na época, não utilizava a métrica convencional.
Dentre os principais personagens desta jornada, temos o português Gomes Freire de Andrade, figura que ocupa posição heroica durante a narrativa; o cacique Cacambo, a índia Lindoia e seu irmão Caitutu; a feiticeira Tanajura; o padre Balda, dono do posto de antagonista, muito bem definido ao longo dos cantos deste poema, dentre outras figuras ficcionais importantes para o desenvolvimento da história narrada em versos e cheia de recursos interessantes, como idas e vindas para explicação do presente com base em situações do passado. Ao criar uma composição que simplifica o gênero poético sem prejuízo para a nobreza de sua linguagem, Basílio da Gama antecipa convenções posteriores e retrata o ordenamento social europeu em contraste ao primitivismo indígena, numa estrutura ainda tomada por muitas simbologias, em especial, o uso do número três, presente em diversas passagens.
Ademais, O Uraguai possui elos com o clássico Os Lusíadas, de Camões, numa estrutura que, digamos, “nega” o antecessor para criar algo semelhante, mas com estilo próprio. Quem conhece o clássico português, no entanto, percebe as aproximações que são claramente detectáveis. A justiça, a paz, o estabelecimento da ordem, no poema, ganham o olhar do europeu, num feixe de versos que expõe o índio por meio de uma imagem valente, corajosa, inocente e como descrito anteriormente, manipulado pelos jesuítas, algo que nos remete também aos debates sobre a construção do mito do bom-selvagem. Logo em seu primeiro canto, Basílio da Gama opta por um recuo no tempo para fazer uma alegoria entre o estado do Maranhão e um campo repleto de cadáveres, numa passagem que retrata a constituição do exército luso-espanhol. Mais adiante, no segundo canto, temos uma abordagem da intervenção dos jesuítas, uma tentativa de acordo entre dois caciques e o herói personalizado pela figura de Gomes Freire de Andrade.
É o momento dos primeiros passos contra as Sete Missões. Há uma tentativa de discurso de paz, mas a guerra é instaurada mediante a impossibilidade de um acordo. As coisas ficam ainda mais intensas no terceiro canto, quando o índio Sepé sugere que Cacambo incendeie o acampamento dos inimigos, criando assim um precedente para a intensificação dos conflitos. Sepé, traído, principalmente, pelo padre Balda, é destinado a morrer, obrigado a ingerir um licor envenenado. A feiticeira Tanajura ajuda Lindoia num ritual que acaba profetizando o Terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, bem como o indesejável futuro que a leva a buscar a morte por meio do suicídio, pois dentre os interesses de Balda, havia o planejamento de casar a índia com seu filho Baldetta. Diante da tragédia, nos encaminhamos para o quarto canto, com o julgamento de Tanajura, também destinada a morrer, culpada pela situação com Lindoia, a índia nobre que prefere morrer a aceitar o destino trágico e traiçoeiro a que seu marido foi submetido.
No canto seguinte, o último de O Uraguai, Basílio da Gama recorre ao que os estudos literários chamam de peroração, isto é, a técnica em que fala com o próprio texto, recurso de linguagem que amplifica a potencialidade do poema. É um desfecho onde narra o posicionamento dos personagens, numa espécie de análise de suas tarefas no decorrer da composição, dando destaque para o líder representado pela figura do colonizador português Gomes Freire de Andrade, um homem benévolo, acatador das necessidades dos indígenas após o abandono deste povo pelos jesuítas, representantes religiosos que deixaram os nativos de lado quando a guerra demonstrava favorecimento para os europeus mais articulados belicamente. Com esta publicação, Basílio da Gama ganhou uma carta de fidalguia e uma posição oficial num cargo da Secretaria do Reino, finalizando os seus dias com glória, imortalizado como escritor.
O Uraguai (Brasil, 1769)
Autor: Basílio da Gama
Editora: Martin Claret
Páginas: 45