Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | O Universo de Jorge Amado, de Ilana Seltzer Goldstein e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.)

Crítica | O Universo de Jorge Amado, de Ilana Seltzer Goldstein e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.)

Um passeio envolvente por interpretações da obra de Jorge Amado.

por Leonardo Campos
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Um dos maiores expoentes da nossa literatura ganhou no final da década de 2000, uma reedição primorosa de sua obra pela editora Companhia das Letras. Jorge Amado, autor de clássicos como Tenda dos Milagres, Terras do Sem Fim, Gabriela Cravo e Canela, Tieta do Agreste, Tereza Batista Cansa de Guerra, Seara Vermelha, Capitães da Areia, dentre tantos outros marcos da literatura brasileira, teve a sua obra revisada, congressos temáticos, documentários e muitas outras produções dentro e fora do circuito acadêmico para celebrar o seu vasto e importante painel de publicações, feixe de narrativas ficcionais que foi amplamente traduzido para outras línguas, além de ganhar leituras em outros suportes narrativos. Exaltador da mestiçagem, do sincretismo religioso e de outros tópicos temáticos sobre a construção de nossa nacionalidade, o baiano ganhou também, pela mesma editora, dois livros de uma coleção chamada Cadernos de Leitura, material focado na aplicação de suas histórias para o âmbito da sala de aula. Organizado por Ilana Seltzer Goldstein e Lilia Moritz Schwarcz, o livro estreita os laços entre os romances e as suas variadas interpretações, aproximando ainda mais nós leitores do autor analisado.

Dividido em cinco artigos que formam capítulos, além das listas com versões cinematográficas e as indicações de leitura, a publicação começa com Jorge Amado do Brasil, de José Castello. No texto, o autor versa sobre a construção de imagens sobre o nosso país, como algo que é fruto da modernidade, tendo no movimento modernista, no Tropicalismo e na obra do escritor baiano os pontos de projeção para a ideia que se tem lá fora dos nossos sons hipnóticos, paisagens ardentes e cores abundantes, imagens que rodam os quatro cantos do planeta e avolumam os guias de viagem para o Brasil. Didático, o artigo destaca alguns romances pontuais, demonstrando os passos de Jorge Amado entre o litoral e o recôncavo, traçando também uma interessante associação entre Guma, de Mar Morto, com Ulisses, da Odisseia, demonstrando o quão vasta é a composição literária do baiano, em livros que dialogam com antepassados, num processo de formação de novos olhares literários constantes, como é o caso dos paralelos entre Suor, de 1934, e o clássico naturalista O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, do século XIX.

Em A Militância Política na Obra de Jorge Amado, assinado por Luiz Gustavo Freitas Rossi, nós podemos acompanhar a trajetória do escritor pelas malhas políticas, desde a sua vinculação aos ideais comunistas, passando pela dissociação e as transformações de posicionamento do autor ao longo de sua carreira múltipla. Do imaturo, mas interessante O País do Carnaval, escrito no vigor da juventude, aos romances mais densos da posteridade, o artigo expõe como Jorge Amado absorveu ideias de clássicos sociológicos que lhe eram contemporâneos, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr., e o maior de todos eles, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, trinca de ensaios de uma época que, segundo o crítico literário Antonio Candido, representa o momento em que o país começou a se apalpar, entender um pouco melhor as suas contradições, dentre outras reflexões. A presença do elemento migrante, a decadência das oligarquias rurais e o proletariado nascente estão entre as questões de preocupação dos romancistas da época, sendo Jorge Amado um dos expoentes desta temática no bojo de sua literatura por muito tempo panfletária.

No artigo O Artista da Mestiçagem, de Lilia Moritz Schwarcz, temos uma panorâmica e interessantíssima aula de História e Sociologia, ideal para pensarmos a representação da religiosidade e os desdobramentos da cultura africana, fruto da diáspora, na formação do polêmico conceito de identidade nacional. A autora afirma que Jorge Amado nunca pretendeu ser um intérprete do Brasil, mesmo sempre tendo sido. Em suas histórias, personagens atravessam os mais variados espaços de Salvador e do interior da Bahia, mesclando credos, cores e mistérios. Ao longo do texto, Schwarcz, que também é coordenadora desta publicação, aponta que o escritor baiano delineou em sua produção um mundo de figuras ficcionais em equilíbrio diante de seus lugares opostos: boêmios, bêbados, prostitutas e mães de santo se relacionaram de diversas maneiras, com membros da elite, políticos e coronéis, por meio de narrativas que apresentavam o “programa” amadiano: a singularidade da democracia racial, ressonâncias do clássico de Gilberto Freyre, grande influenciador da tessitura literária de Jorge Amado. Para o autor, a mestiçagem era algo positivo para a formação do nosso povo, diferente dos ideais de Sílvio Romero, Tobias Barreto e Euclides da Cunha, pensadores de uma época em que se acredita no cruzamento de raças como um fator para degeneração social no país.

O autor Reginaldo Prandi colabora com o livro por meio do artigo Religião e Sincretismo em Jorge Amado. No texto, ele expõe que na leitura dos romances do escritor, constantemente testemunhamos relatos sobre a religião afro-brasileira dos orixás, destacando que o candomblé se formou no Brasil lá no século XIX e até a década de 1960, era algo mais restrito ao âmbito baiano, espalhando-se para outras regiões do país posteriormente. Segundo Prandi, mais que uma religião, o candomblé também foi uma basilar contribuição para a formação da cultura brasileira, com muitos dos seus elementos presentes em nosso cotidiano, indo além do reduto religioso. O artigo destaca, de maneira também muito didática, como todos os demais da publicação, questões sobre intolerância religiosa, debatida por meio de análises de passagens dos romances de Jorge Amado, dando também destaque para outros contribuintes para a expansão desta religiosidade, tais como o fotógrafo Pierre Verger, o sociólogo Roger Bastide e o artista plástico Carybé, estrangeiros que se comprometeram em analisar a cultura brasileira, por meio de olhares distintos, mas confluentes. Jubiabá, Tenda dos Milagres e O Compadre de Ogum são os principais livros analisados neste que é um dos melhores textos de O Universo de Jorge Amado, penúltima reflexão do material escrito com didatismo e bastante objetividade, mas sem deixar os detalhes de lado, ampliando as nossas interpretações sobre os romances em questão.

Por fim, temos A Construção da Identidade Nacional nos Romances de Jorge Amado, assinado por Ilana Seltzer Goldstein, um artigo cheio de fôlego que analisa as idealizações que permeiam o conceito de baianidade e brasilidade, cápsulas de um tema maior, chamado identidade nacional. Compreendemos por aqui o quanto Jorge Amado se identificava com uma literatura voltada ao processo de mixagem entre o erudito e o popular, dando destaque para ambos na composição de seus personagens e tramas. No âmbito do que é popular, a autora destaca a relação entre os seus romances com a literatura de cordel, terreno que também trabalhou num regime de trocas, transformando as suas histórias em narrativas poéticas adornadas por melodias. Além destas abordagens, o artigo fornece contribuições sobre o “jeitinho brasileiro”, o mito da cordialidade, bem como destaca a complexidade da ideia de identidade nacional única, um processo que na verdade é dinâmico em sua construção. Elucidativo, o conteúdo ainda faz paralelo, mesmo que numa seção separada, com Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, para versar sobre a “dialética da malandragem”, expressão que intitulada um dos principais ensaios do já mencionado crítico literário Antonio Candido.

Com uma leitura fluída e textos que mantém uma padronização de tamanho e desenvolvimento, O Universo de Jorge Amado falha apenas em seu principal ponto: as sugestões de sala de aula. É assustador ver como artigos tão bem escritos são finalizados por dicas tão superficiais de uso da obra amadiana no âmbito escolar. Desconectadas das demandas de ensino e aprendizagem contemporâneas, as abordagens são todas mecânicas demais, um contraste para as belíssimas ideias e interpretações presentes nos textos dos autores. Faltou vigor, brilho, atenção cuidadosa, como se os trechos fossem ideias soltas, jogadas de qualquer jeito para o professor falhar em suas aulas. Ademais, cabe ao leitor pegar tais dicas e transformá-las, pois os caminhos podem ser contemplados nos artigos que estruturam esta publicação. A sensação que se tem é que todos os envolvidos queria reforçar a importância das reedições dos romances de Jorge Amado pela Companhia das Letras, dando conta da parte “marketing”, além de preencher os seus perfis profissionais na plataforma Lattes, a parte “marketing pessoal”. Fora esse escorregão, o livro é fluente e oferta aos leitores muitas reflexões pertinentes sobre Literatura e Cultura.

O Universo de Jorge Amado (Brasil, 2009)
Autoria: Ilana Seltzer Goldstein e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.)
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 96

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