O Último Imperador talvez seja o último grande épico old school, da era pré-CGI, mas a obra de Bernardo Bertolucci não só merece essa adjetivação, como também atenção por trabalhar um período relativamente recente da História do Mundo, mas que é pouquíssimo conhecido: a saga de Puyi, o último imperador da China e 12º da Dinastia Qing, que chegou ao trono em 1908, quando não tinha nem três anos de idade. Ao mesmo tempo que o longa é um recorte íntimo da vida do monarca, ela nos permite vislumbrar um pouco da conturbada história do país do começo do século XX até a segunda metade dos anos 60 em uma estrutura de flashbacks que mantém a atenção mesmo diante da duração avantajada, mas necessária, da obra.
Bertolucci, com muito apuro técnico e uma direção de arte magnífica que se beneficiou da rara autorização para filmagens em locação na então realmente proibida Cidade Proibida, em Pequim, tem uma visão peculiar de Puiy e do escopo de sua produção. Por mais grandioso que tudo seja – figurinos lindíssimos das várias épocas e realidades, uma quantidade quase inacreditável de figurantes e estruturas deslumbrantes – seu filme é, basicamente, uma história de confinamento, de prisão de verdade, algo que começa com o imperador já há muito deposto e adulto em 1950 (vivido por John Lone), sob a custódia do Exército Vermelho e retrocede para 1908, com ele com quase três anos (Richard Vuu) assumindo uma posição simbólica, sem nenhum poder efetivo.
Puiy é prisioneiro dos costumes no curto período em que efetivamente é imperador e, depois, da necessidade de se manter um símbolo, já sob a tutoria do escocês Reginald Johnston (Peter O’Toole), como um imperador fantoche após a Revolução Chinesa (não confundir com a Revolução Comunista de 1949), que transformou o país em uma república marcada pela corrupção, mas sem que o jovem tenha consciência disso. Aprisionado no seu luxo incomensurável e sem nenhuma conexão com a realidade extra-muros e sem nem mesmo saber ao certo quem ele é, acompanhamos o crescimento do jovem ao longo de diversos períodos expostos brilhantemente pelo cineasta que estrutura sua obra cronologicamente em dois períodos, ou seja, avançando no tempo nas duas pontas, o que empresta uma belíssima e rara fluidez narrativa que, graças ao cuidadoso e preciso trabalho de Gabriella Cristiani na montagem (profissional que já trabalhara nessa posição para Bertolucci em La Luna e A Tragédia de um Homem Ridículo), mantém cada período muito claramente definido, dando tempo para que o espectador se aclimate.
A trágica vida do último imperador da China é também muito bem pontuada pela fotografia de Vittorio Storaro (Apocalypse Now, Ishtar, Dick Tracy) que, trabalhando em conjunto com o design de produção de Ferdinando Scarfiotti (que viria a repetir a parceria com o diretor em O Céu que nos Protege), sabe definir as épocas destacando suas cores e seu brilho, algo que torna o contraste entre o presente cinza e o passado dourado de Puiy ainda mais forte e triste. Afinal, vemos o crescimento e maturidade de alguém que só realmente encarou a vida como ela é quando saiu de sua prisão metafórica para sua prisão real, sem nunca efetivamente comandar seu destino
No entanto, o longa, apesar de sua duração, em nenhum momento cai na tentação de ser didático, o que, ironicamente, pode ser um problema para a compreensão da exata dimensão do que Bertolucci pretendia passar. Como o ponto-de-vista é mantido constante em Puyi, o espectador só sabe aquilo que ele sabe, com algumas licenças poéticas aqui e ali para fins narrativos. Dessa forma, e diante da ingenuidade de Puyi, basicamente um fantoche que passou por diversos marionetistas, a informação é filtrada e manipulada e não por alguma estratégia nefasta do roteiro co-escrito por Bertolucci e Mark Peploe, com redação inicial de Enzo Ungari, mas sim pelo desejo do cineasta de assim o fazer para manter-se fiel à sua abordagem.
Com isso, apenas quero dizer que o filme não é completamente autossuficiente, o que normalmente poderia ser visto como um problema. No lado da diversas prisões ao longo da vida de Puyi, a obra mantem-se intacta e viva com as informações que recebemos, mas seu impacto fora dos muros, grades e banimentos de Puyi, ela exige um conhecimento histórico que não está completamente nas telas. Dessa maneira, o aproveitamento do épico em sua plenitude encontra barreiras que, porém, não são completamente intransponíveis. Sua narrativa como um todo funciona e a história do último imperador é maravilhosamente bem contada, mas os acontecimentos externos que afetam o protagonista – por exemplo sua própria deposição e, depois, o Massacre de Nanquim – alcançam o espectador de maneira ou muito simples, ou incompleta, ou incorreta e essa característica, excepcionalmente, é parte integral da estrutura escolhida pelo cineasta e, ao passo que pode causar frustração em alguns, precisa ser interpretada dessa forma. Bertolucci não trafega pelo caminho mais fácil e, ao não fazer isso, ele deixa de entregar de bandeja o que talvez muitos quisessem. No entanto, o que ele não revela ou aborda é mais revelador do que se ele mergulhasse de cabeça no assunto, ainda que essa conclusão talvez só seja realmente possível com uma contextualização histórica que, admito, nem todo mundo terá, pelo menos não na primeira conferida.
Reputo justamente a essa característica o que faz de O Último Imperador um épico de méritos próprios, que não se contenta em apenas deslumbrar, mas sim, a todo tempo, desafiar o espectador ao colocar questões vistas por olhos de alguém que nunca foi livre de verdade para viver sua vida. A prisão de Bertolucci é agoniante, ainda que estranhamente magnífica.
O Último Imperador (The Last Emperor, Reino Unido/Itália – 1987)
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Mark Peploe, Bernardo Bertolucci, Enzo Ungari (também baseado na autobiografia de Puyi, mas que não foi creditada)
Elenco: John Lone, Richard Vuu, Tijger Tsou, Wu Tao, Joan Chen, Peter O’Toole, Ying Ruocheng, Victor Wong, Dennis Dun, Ryuichi Sakamoto, Maggie Han, Ric Young, Wu Junmei, Cary-Hiroyuki Tagawa, Jade Go, Fumihiko Ikeda, Fan Guang, Henry Kyi, Alvin Riley III, Lisa Lu, Hideo Takamatsu, Hajime Tachibana, Basil Pao, Henry O
Duração: 163 min.