Poucas coisas são tão irritantes quanto um engarrafamento? O nosso dia se perde diante de uma circunstância interessante, os ânimos ficam aflorados, a paciência se bifurca pela zona do esgotamento e cansaço é uma das palavras-chave definidoras desta situação que representa a vida nas zonas urbanas contemporâneas, repletas de pedestres, ciclistas, motociclistas, ônibus, caminhões e carros pelas ruas, a cortar as zonas da cidade para o fenômeno da mobilidade cotidiana. O grande problema, debatido hoje nos meandros da engenharia, meio ambiente, educação para o trânsito e outras áreas é a celeuma oriunda da quantidade de carros na rua, haja vista os variados modais que permitem as nossas travessias sem precisar transtornar tanto o espaço do trânsito, um ambiente coletivo que, sabemos, é território de bastante tensão. Ao passo que lemos cada período da crônica em questão, analisada em detalhes mais adiante, nós observamos a visão de seu autor, interessado na junção de diversão aliada ao ato reflexivo.
Para refletir sobre os infortúnios deste terrível momento não corriqueiro apenas nas metrópoles, mas também em cidades pequenas, o escritor, cartunista e humorista Luís Fernando Veríssimo, conhecido por muitas crônicas ideais para reflexões em sala de aula e em espaços não escolares, escreveu O Último Engarrafamento, texto que é uma representação metonímica de seu estilo irônico, sagaz, sequência de palavras que conseguem transmitir diversas mensagens reflexivas em poucas linhas, em linhas gerais, uma demonstração assertiva do gênero literário em questão, em sua melhor forma. Aqui, encontramos as adversidades das relações humanas devidamente instauradas no trânsito, espaço social, tal como já mencionado, repleto de tensões e figuras engrenadas por interesses pessoais, mas entregues aos devaneios do coletivo.
Segundo o autor, há boas e más notícias. A crônica revela que nunca houve tantos carros na rua. Ponto positivo para a economia, péssima realidade para aqueles que atravessam as pistas que cortam as cidades e precisam driblar a concorrência para ganhar fôlego na corrida das selvas urbanas, inchadas pelo contingente de automóveis, poluídas pelos gases emitidos constantemente, bem como condutores pouco habilidosos para assumir tanta responsabilidade. Classe média em expansão, empregabilidade, ampliação dos limites de crédito, em suma, a sensação de progresso e acompanhamento do capitalismo. Na contramão disso, temos sinistros em demasia, agravamento de neuroses, estresse na mobilidade. O que podemos definir como positivo e quais os traços negativos que não compensam a evolução dos espaços sociais?
As campanhas ambientalistas contemporâneas e as reflexões no campo da educação para o trânsito tem destacado cada vez mais a preocupação com a dominância dos carros, veículo que pode ocupar mais espaço do que deveria, algo acontece também não apenas por culpa dos habitantes das grandes cidades, mas numa leitura relacionado ao nosso contexto atual, justificada pela falta de transporte público seguro e de qualidade. Em sua crônica, o escritor versa ironicamente sobre a hora do rush. Antigamente, havia uma hora exata para isso. Hoje, pode ser a qualquer momento. Ele brinca e dispara que sente saudades desse tempo, complementando logo depois com a cereja de sua crônica: vamos morar no trânsito?
Nos desdobramentos dinâmicos de O Último Engarrafamento, Luís Fernando Veríssimo expõe e a sua habilidade cronista ao trazer para o texto o caráter apressado desta tipologia conhecida por sua circulação, desde o século XIX, pelas páginas dos jornais, ecoantes nos tempos atuais nas redes sociais, aplicativos e nos sites. A temática do inchaço causado pela quantidade de automóveis e condutores razoáveis nas ruas é interessante, bem delineada e amplifica a sua qualidade com a estrutura dinâmica adotada pelo autor. Veríssimo recria a realidade e traça comentários sociais que dizem algo para todos nós, agentes cotidianos da mobilidade. Faz isso sem recorrer aos excessos comuns ao humor que não sabe achar o seu equilíbrio. Ele é afiado, mordaz, objetivo e pontual. E até nos leva a questionar a maior das ironias: os telejornais cobrem tantos sinistros de trânsito com sensacionalismo e tom trágico, mas nos comerciais, a publicidade age freneticamente vendendo a ideia de velocidade como algo sofisticado, promoção da sensação de liberdade. Como lidar com tantos paradoxos?
O Último Engarrafamento (Brasil, 2008)
Autor: Luís Fernando Veríssimo
Editora: Globo
2 páginas