Baseado na única peça escrita e dirigida por Éric Rohmer, a diretora portuguesa Rita Azevedo Gomes (uma das melhores cineastas vivas) expande a típica narrativa rohmeriana para dentro de um jogo metalinguístico. É claro que há muito do diretor francês aqui, principalmente com relação ao que se refere ao título (uma obra de Mozart), que é tão igual aos papéis do clímax de Raio Verde e ao primeiro conto de 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle.
Comum a estes três, há um fenômeno que é citado durante toda a história, objeto de busca de seu protagonista, mas que a própria narrativa parece empurrar para longe, com sua ideia se abastecendo no imaginário pelas interações entre os personagens, que acabam sendo tão parte do fenômeno quanto ele em si. Deste modo, ao fim, quando os protagonistas possuem a chance de encará-lo, sempre em uma cena que parece milagrosa, o momento funciona como uma grande catarse que é construída lentamente, com a sua recompensa sendo possível justamente porque ele é apenas o acúmulo de tudo que foi antecipado anteriormente.
Igualmente, a dinâmica da relação entre o casal, é sem dúvidas parte de uma herança rohmeriana, por um jogo de brigas e conciliações que perpassam tanto os assuntos mais banais como também são infectadas por discussões sobre relacionamentos e as diferentes formas da arte. O personagem masculino então, um formidável Pierre Léon, que faz um esnobe amante da música clássica, é síntese de diversos outros personagens do realizador francês, que consegue ser tanto objeto de pena quanto um homem fascinante de se escutar.
Porém, este não é um filme de um homem morto. O que falar então, de Rita Azevedo Gomes? Aparentemente, como roteirista, ela incorpora na relação do casal uma contextualização de que eles seriam atores em um set de filmagem, em que o cineasta Adolfo Arrieta (um diretor real, caso alguém não saiba) está gravando um filme. Este jogo gera uma constante confusão: o que vemos são os momentos de filmagem, em que eles estão atuando, ou os momentos dos atores reais, entre as filmagens e seus personagens? Há cenas em que achamos que são eles mesmo, mas, após um longo tempo, mostra que aquilo era uma cena filmada. Por outro lado, outras não.
Honestamente, apenas por uma primeira sessão, é difícil sentir a confiança para ser mais preciso sobre a relação da metalinguagem presente, ainda que sua presença seja um objeto estranho intrigante, que parece fazer de todo o filme um grande ensaio, até chegar no único momento genuíno (ou será que não?) — que é a hora de escutar o Trio em Mi Bemol. Ou será que o próprio filme é consciente de ser um jogo sobre onde está a sua autoria? Em Rohmer, em Rita, em Arrieta ou nos próprios atores? No mais, este é um grandiosíssimo filme de mise-en-scène formalista, em que os atores se movimentam no plano como peças de xadrez, em que seus gestos e mudanças na voz são tão essenciais à narrativa quanto ao que é dito, assim como a dilatação temporal das cenas, mais os suaves movimentos e reenquadramentos de Rita pelos décors.
O Trio em Mi Bemol (Idem, 2022) — Portugal, Espanha
Direção: Rita Azevedo Gomes
Roteiro: Rita Azevedo Gomes, Renaud Legrand
Elenco: Rita Durão, Pierre León, Ado Arrieta, Olivia Cábez
Duração: 127 mins