Confesso que, ao abrir as primeiras páginas de O Tigre de Sharpe (1997), volume inicial da saga criada por Bernard Cornwell, minha expectativa não era das mais elevadas, já que histórias com um tom ostensivamente militar nunca estiveram entre minhas preferidas. Ainda assim, a curiosidade de conhecer as origens desse soldado fictício nas Guerras Napoleônicas, atuando, aqui, no Cerco de Seringapatam (Índia, 1799), me impulsionou a seguir em frente, mesmo que o início da trama, com seus jargões e hierarquias castrenses, não tenha me conquistado. O que me manteve preso, no entanto, foi a boa escrita de Cornwell, que, longe de se limitar a uma crônica simplista de batalhas, atrai o leitor para um universo onde o peso da pólvora e o clangor das espadas se misturam a uma inesperada humanidade, com bom humor, variedade de relações interpessoais e muitas janelas abertas para tragédias. É essa capacidade de transformar o que poderia ser uma ficção histórica meio burocrática em algo palpável, mais próximo do chão lamacento pisado por soldados rasos, que fez o livro crescer para mim, tendo no centro das atenções um protagonista que, gradualmente, se torna fascinante.
A cuidadosa ambientação geográfica e cultural está entre os grandes pilares que sustentam a narrativa, e é impossível não se impressionar como Cornwell pinta o mundo ao redor de Richard Sharpe, soldado raso do 33º Regimento de Infantaria britânico, perdido entre as castas rígidas de um exército colonial e as mais diversas regras, aromas, texturas, vivências e olhar exótico (do ponto de vista dos invasores, paternalista, xenofóbico, misógino e racista) de uma Índia em transformação. A cultura militar britânica, com suas leis draconianas, ganha vida nas descrições das condições miseráveis dos soldados — homens que, entre marchas forçadas e rações escassas, enfrentavam a ameaça constante de açoitamentos brutais, como os dois mil golpes que Sharpe é condenado a receber: uma punição que reflete uma visão opressiva e canhestra de disciplina, além do sadismo institucionalizado na lógica dos oficiais. Paralelamente, a Índia de 1799 não está no livro apenas como um pano de fundo diferentão, mas como um espaço vivo, onde as intrigas do sultão Tipu e as tensões entre muçulmanos e hindus dialogam com a arrogância imperial dos britânicos e a presença dos franceses na região (há várias citações a Napoleão Bonaparte e sua campanha do Egito, por exemplo), criando um mosaico cultural que enriquece as disputas locais e abraçam um cenário geopolítico maior.
Já o protagonista, Richard Sharpe, entra em cena como uma figura que não tem absolutamente nada de heroísmo ou fidelidade ao Exército de seu país, ao contrário, ele detesta a instituição e planeja desertar. É exatamente essa exposição que o torna intrigante, ainda que a melhor parte de seu desenvolvimento só aconteça do meio do livro para frente. Falta-lhe, nos primeiros capítulos, uma profundidade que vá além das ações impulsivas e da bravura em combate (desengonçada e interesseira, já que ele só está de olho nos saques, para poder ter dinheiro na deserção). É somente após a virada dramática de sua condenação — evento que o coloca à beira da morte e, paradoxalmente, lhe abre as portas para uma missão improvável — que o “Sharpezinho” mostra camadas mais ricas, permitindo que o leitor entre em seus pensamentos e acompanhe as transformações que o levam de um desertor em potencial a um homem fiel ao Exército. Essa evolução reflete uma escolha narrativa interessante: Cornwell parece menos interessado em criar um ícone intocável do que em explorar a fragilidade e a resiliência de alguém comum diante de circunstâncias extraordinárias, um bom estudo sobre o que significa sobreviver num mundo que pune tanto a fraqueza quanto a rebeldia.
Em sua construção dramática, o autor explora as amizades e inimizades entre militares, assim como cenas de traição, planos nos bastidores e indecisões em relação à vitória inglesa diante de Fate Ali Tipu, o chamado “Tigre de Maiçor”. As cenas de batalha, que poderiam facilmente cair num desfile monótono de estratégias e explosões, acabam se mostrando um dos pontos mais dinâmicos do livro (destaco a fantástica campanha próximo à muralha, um dia antes da chuva inicial das monções), conduzidas com uma energia que prende o leitor e são ligadas a outros dramas compartilhados. Mesmo que a passagem de um evento para outro nem sempre seja exemplar, no todo, funcionam bem. Cornwell demonstra um domínio narrativo impressionante (além de excelente pesquisa histórica) ao descrever o caos do Cerco de Seringapatam, desde os movimentos táticos das tropas britânicas até o desespero dos defensores de Tipu, equilibrando os fatos com um ritmo ágil de escrita ficcional. A pretensão do autor é tornar o teatro de guerra acessível, palpável, quase cinematográfico em sua capacidade de envolver o leitor, e ele consegue fazer isso com louvor, especialmente nas batalhas finais, que são as melhores de todo o livro. Essas ações também servem de espelho para as relações humanas que se desenrolam em paralelo, como a inimizade visceral entre Sharpe e o sargento Obadiah Hakeswill, um antagonista cuja crueldade e resistência à morte trazem para a saga uma tensão imensa, transformando o confronto entre os dois num drama psicológico impagável.
O Tigre de Sharpe cumpre o que se propõe, deixando no ar um convite para explorar o que vem a seguir na trajetória do protagonista, mas também perguntas que ressoam mais fundo: o que significa, afinal, a humanidade em meio ao horror da guerra? O que é permitido num conflito armado? O que é válido fazer, numa disputa de poder? Cornwell cerca essas questões com personagens cativantes, batalhas, interações formais, relações amorosas, políticas, corruptas e desenvolvimento de amizades e inimizades que deixam o livro instigante, atiçando a curiosidade do público. Entre os escorregões na transição entre cenas intensas e momentos de real desenvolvimento da história, Cornwell reflete sobre o custo da sobrevivência, o preço da lealdade e a estranha beleza de um mundo onde o heroísmo nasce do suor, do sangue e da lama. É um começo promissor, imperfeito, mas carregado de vida, que nos faz olhar para a próxima etapa não apenas com curiosidade, mas com a certeza de que ainda há muito ódio, muitas vitórias, derrotas, mortes e embates de ego e vingança pela frente. Para quem não tem grande apreço, como eu, por enredos envolvendo essencialmente militares, esta série é uma inesperada boa pedida.
O Tigre de Sharpe (Sharpe’s Tiger) — Reino Unido, 2 de Junho de 1997
Autor: Bernard Cornwell
Série: As aventuras de Sharpe #1
Editora original: HarperCollins
Edição lida para esta crítica: Editora Record — 1ª edição (23 de outubro de 2015) – Edição para Kindle
Tradução: Sylvio Gonçalves
409 páginas