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Crítica | O Testamento Fatal (1970)

"Concerto para pistola solista".

por Luiz Santiago
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Mais próximo dos mistérios aconchegantes ingleses do que dos gialli da bota mediterrânea, O Testamento Fatal (1970) firma-se como uma brincadeira bem-vinda com esses gêneros, adicionando riso ao suspense violento que se desenrola após uma família reunir-se numa luxuosa propriedade rural em Suffolk, Inglaterra, para a leitura do testamento do Conde de Vale. Acredito que as primeiras coisas que chamam a atenção do público aqui são as tomadas curtas, editadas no ritmo sincopado da música, e a paródia que o compositor Francesco De Masi (mais conhecido por suas trilhas em westerns spaghetti) faz do Concerto para Piano nº1 de Tchaikovsky, mudando a melodia principal e acrescentando sons de tiro nas notas fortes da orquestra, algo que inicialmente é quase aceitável, mas depois se torna estranho e rejeitável. Tal escolha musical cria um ar estranhamente romântico para a abertura, e talvez por isso mesmo, dá uma nova percepção do macabro e do perigo que ronda esses personagens, cujo interesse é colocar as mãos na herança e partir o mais rápido possível daquele lugar.

O diretor Michele Lupo provoca os seus personagens em duas esferas: no perigo da morte (apresentando constantes brincadeiras de um jovem que finge assassinatos dele e dos outros membros da família) e no “comportamento de classe” desses endinheirados, manifestando suas afetações, racismo, vícios e desfaçatez de bom-mocismo para encobrir aquilo que fazem de mal aos outros. É um jogo de egos e poder, em suma. Mas um jogo executado em diferentes patamares, do cômico ao crítico, dirigido de forma visualmente instigante, explorando os muitos pontos de vista e dramas individuais do grande elenco em cena. Esse tipo de abordagem jocosa para enredos de mistérios e assassinatos faria escola no futuro, gerando produtos famosos em diferentes épocas, como Os Sete Suspeitos (1985), Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993), Assassinato em Gosford Park (2001) e Entre Facas e Segredos (2019), só para citar exemplos de diferentes décadas. Ao mostrar o lado questionável de pessoas aparentemente “acima de qualquer suspeita“, o diretor cria um senso de desconfiança que ultrapassa as incertezas comuns, adentrando a um status da grande violência exercida basicamente por interesse financeiro — uma recorrência no giallo, convenhamos.

O início e praticamente todo o desenvolvimento do filme reforçam o desconforto que o espectador deve sentir nessa luxuosa propriedade, a despeito da beleza do ambiente e da etiqueta que a família tenta manter o tempo inteiro, algo refletido nos figurinos, nas reuniões para chás e nos planos de cada um para o futuro. O conflito de O Testamento Fatal não está apenas na insatisfação dos herdeiros com o que lhes foi deixado, mas também na sequência de assassinatos que fazem surgir mais condutas duvidosas, direcionando compassadamente o personagem de Gastone Moschin (Sargento Thorpe) para a dianteira da investigação, numa piscadela sobre a incompetência da Scotland Yard durante a investigação. Muitos espectadores não gostam do comportamento abobalhado de Thorpe no início do filme, mas eu o vejo como um perfeito complemento ao drama que ali estava em construção. À medida que novas necessidades aparecem, o policial vai ganhando cenas mais inteligentes, dentro do campo da dedução, sem perder os momentos de comédia física ou de inconveniência em sequências sérias que eu particularmente gosto muito.

A dubiedade da cena final, somada à comicidade irresponsável dos dois homens da lei, fecha o filme reforçando a ideia de uma troça com o giallo, completando a mistura com um outro tipo de produção cinematográfica sobre investigação de crimes. Ao mesmo tempo, o diretor aponta para a fuga de responsabilidade de determinados grupos sociais, fechando os olhos para um possível problema, esperando não ser obrigado a fazer aquilo que é pago para fazer. É um conjunto de elementos dramáticos que beira o absurdo; um tipo de abordagem que normalmente não se espera nesse tipo de filme, e que, talvez por esse mesmo motivo, conseguiu chegar a um resultado tão altamente positivo.

O Testamento Fatal (Concerto per pistola solista / The Weekend Murders) — Itália, 1970
Direção: Michele Lupo
Roteiro: Sergio Donati, Massimo Felisatti, Fabio Pittorru
Elenco: Anna Moffo, Ida Galli, Gastone Moschin, Peter Baldwin, Lance Percival, Giacomo Rossi Stuart, Christopher Chittell, Marisa Fabbri, Quinto Parmeggiani, Beryl Cunningham, Orchidea De Santis, Robert Hundar, Franco Borelli, Ballard Berkeley, Richard Caldicot, Harry Hutchinson
Duração: 98 min.

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