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Crítica | O Terceiro Tiro

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

What seems to be the trouble, Captain?

Em minha concepção, um dos principais ingredientes que fazem um diretor de cinema entrar para o Olimpo dos Grandes Mestres é a sua capacidade de brincar inteligentemente com as ferramentes que tem em mãos, de mudar solidamente de abordagem quando o enredo exige (digo isto porque não parece óbvio para alguns criadores, que teimam em forçar qualquer produto, em qualquer contexto, à sua forma única de fazer as coisas) e de propor novos pontos de vista dentro de sua identidade e seus temas recorrentes. Se pegarmos a filmografia de Alfred Hitchcock apenas na primeira metade da década de 1950, veremos obras tão diferentes quanto Pavor nos Bastidores (1950), Pacto Sinistro (1951), A Tortura do Silêncio (1953) ou Ladrão de Casaca (1955) e tão experimentais, em diversos níveis, quanto Disque M Para Matar (1954), Janela Indiscreta (1954) e o objeto da presente crítica, O Terceiro Tiro, que chegou aos cinemas em setembro de 1955.

Estreia de Shirley MacLaine nos cinemas, último papel de Philip Truex (o pobre Harry) e primeira parceria de Hitchcock com o compositor Bernard Herrmann, O Terceiro Tiro é uma improvável comédia romântica do diretor, recheada de tons macabros, e cujo roteiro de John Michael Hayes (baseado na obra de Jack Trevor Story) brinca com o comportamento de pessoas muitíssimo respeitáveis diante da morte de um homem sobre o qual ninguém fará perguntas ou irá se importar. Guardadas as devidas proporções, essa temática de “teste de reações para distintas classes/ocupações” sempre foi um dos grandes prazeres de Hitchcock, mas aqui isso tudo é embrulhado num estilo cronista de narrativa, ressaltado pela montagem que faz questão de marcar cada bloco da ação por fades pretos entre um ato e outro, indicando a passagem do tempo ou também do espaço; com toda a saga passando-se ao longo de um único dia. O dia em que Harry morreu e foi diversas vezes enterrado e desenterrado por um grupo de desconhecidos.

A placidez da música de Herrmann e a abordagem idílica, saturada, marrom, vermelha e amarela da fotografia de Robert Burks (vencedor do Oscar na categoria por Ladrão de Casaca), tão bela que parece saída de um melodrama qualquer de Douglas Sirk, nos coloca em um cenário onde aparentemente um crime não teria lugar. Pessoas corretas, silêncio e o vento ajudando na queda das folhas das árvores estabelecem um clima de improbabilidade criminal que rapidamente é contrastado com a descoberta do Capitão Albert Wiles (Edmund Gwenn) de que ele, sem querer, atirara em um homem e o matara. É nesse primeiro contato que o diretor dá partida ao sombrio motor cômico da fita, estabelecendo o corpo de Harry como um McGuffin e diante dele sugerindo uma discussão densa sobre a responsabilidade legal de alguém diante de um crime.

Criminosos devem pagar pelos crimes cometidos, correto? Bem… nesta vila, não necessariamente. Mais para o final do filme, quando a verdade vem à tona, a tensão se distende e a comidade ganha o seu tempero moral (mas não negativo). Todavia, não temos essa informação no início, e ao longo de toda a obra vemos pessoas que não dão a mínima para um homem morto, não se espantam com a possibilidade de alguém próximo tê-lo matado e, principalmente, não se ressentem de colocar ou retirar o homem da cova para atender a diferentes interesses pessoais que surgem pelo caminho. O roteiro faz brilhar as nuances de uma “banalidade do mal sob o olhar de cidadãos de bem“, onde a morte não tem o impacto que deveria ter e onde o crime é apenas um inconveniente que deve ser logo escondido para que os distintos cidadãos voltem aos seus romances outonais — e notem aqui a pequena ironia frente aos laços humanos na obra: as relações amorosas desabrocham no momento em que a vida da natureza à volta começa a morrer, tendo um corpo morto como catalizador de dois encontros para casais em diferentes faixas etárias.

Testando um novo tipo de comédia para o público americano e entrelaçando o encobertamento de um crime com insinuações sexuais que devem ter feito corar os recatados dos anos 50, Hitchcock cria em O Terceiro Tiro um teste moral onde todos os seus personagens são reprovados, com anuência do público, que ri e teme pela possibilidade desses encobertadores e possíveis criminosos serem pegos. E sabem o que é melhor? A indicação final de que toda a nossa simpatia por essas pessoas de ilibada retidão é válida, já que elas não cometeram crime algum. A finalização com a máxima maquiavélica que prova o perigo de certos horrores cometidos em uma bolha povoada por gente de rabo preso ou simplesmente cegos pela paixão. E tudo isso em um pequeno e ‘simples filminho’ do Mestre do Suspense, um daqueles que quando temos contato e atentamos para o que é mostrado, nos perguntamos por que não recebeu a estima e o reconhecimento que de fato merece.

The trouble with Harry is over.

O Terceiro Tiro (The Trouble with Harry, EUA – 1955)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: John Michael Hayes (baseado no livro de Jack Trevor)
Elenco: John Forsythe, Shirley MacLaine, Edmund Gwenn, Mildred Dunnock, Mildred Natwick, Jerry Mathers, Royal Dano, Parker Fennelly, Barry Macollum, Dwight Marfield
Duração: 99 min.

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