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Crítica | O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador

por Michel Gutwilen
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Explicar o contexto da produção de uma obra como O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador auxilia na sua apreciação como obra, uma vez que seu próprio caráter segue uma forte metalinguagem. Trata-se de um filme perdido de 1967, o primeiro do veterano e falecido diretor Raoul Ruiz, que foi achado e transformado (ou melhor, re-imaginado) por sua viúva, Valéria Sarmiento, editora e cineasta. Ora, existe aí um espaço temporal de 53 anos, um diálogo entre presente e passado. Entre quem é morto — Ruiz se fora em 2011 — e quem é vivo, sendo o Cinema o meio ideal para promover esta mediação entre essas duas pessoas que viveram sua vida em torno dele. Afinal, sob o ponto de vista de Sarmiento, mexer numa obra de seu esposo não é tão diferente de visitar o fantasma de sua memória. 

Então, o que há de importante nesta contextualização? Propositalmente ou não, o fato é que a própria narrativa fílmica está exatamente em sintonia com seu processo de feitura no mundo real. Com a curta duração de uma hora, na primeira metade acompanhamos as crescentes alucinações por parte de um recém viúvo e, após um certo acontecimento, a segunda metade é como um grande playback da anterior, uma revisita fantasmagórica às sequências já vividas pelo protagonista enquanto um voice-over oferece intromissões casuais que trazem questionamentos ou observações. Portanto, o grande mote central deste filme reside em um uso consciente da técnica cinematográfica como forma de permitir que exista uma conexão entre o mundo dos vivos e dos mortos. 

SPOILERS!

Se as grandes corporações hollywoodianas vão no caminho de burlar a morte de suas grandes estrelas a partir de um grotesco e desumanizador CGI ultra realista — este, que pode chegar a uma mimetização do corpo a partir de uma verossimilhança física, mas jamais conseguirá replicar a alma —, o que faz Sarmiento é ir para um outro caminho completamente diferente. Não me parece haver nada mais bonito e assustador, neste ano de 2020, do que haver um filme sobre um viúvo perturbado suicida, que é justamente dirigido por uma viúva que enxerga no próprio ato de fazer cinema uma forma de trazer novamente a vida o espírito de seu marido.

A partir de uma encenação surrealista, a reação daquele viúvo vai ficando progressivamente mais instável diante da morte de sua mulher. Neste sentido, todas as técnicas utilizadas são em prol desta criação de um senso de estranhamento espacial e de distorção da realidade. A montagem de cortes rápidos; planos de cabeça para baixo; uma decupagem que privilegia ângulos deformados e movimentos repentinos de câmera. Tudo isso parece retirar o personagem de um mundo real e levá-lo para um pesadelo mental. Porém, se fosse só isso, O Tango do Viúvo e Seu Espelho seria apenas um média-metragem e sem tanto impacto para além de um sensorialismo imediato. Sua real significação vem de toda essa segunda metade calcada no ato de retorno. Nesta continuidade ao surrealismo de horror, agora há uma jornada fantasmagórica de culpa e de revisita aos seus próprios atos, sempre buscando justificativas para sua insanidade. A mente, neste processo de não saber se está viva ou morta, vai perdendo cada vez mais qualquer nível de racionalidade, com as vozes invertidas contribuindo imensamente para esta imersão espectatorial em um estado de delírio. 

Voltando ao paralelismo entre filme e seu contexto de realização, ambos são como este paradoxal encontro de dois mundos que, na realidade, não deveriam se encontrar. Mas, desrespeitando qualquer leio biológica ou física, a magia do Cinema permite isso. Permite que a alma do protagonista vague, ainda que perdida, pelas suas próprias memórias, reveja seu passado. E a magia do Cinema — em todos os sentidos: a preservação da película, as possibilidades tecnológicas de restauração; a própria liberdade criativa do diretor em criar suas regras dentro de um universo próprio através da montagem — permite com que Sarmiento reencontre Raul. 

O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador (El tango del viudo y su espejo deformante) — Chile; 1967 e 2019
Direção: Raoul Ruiz, Valeria Sarmiento
Roteiro: Raoul Ruiz, Valeria Sarmiento, Omar Saavedra Santis
Elenco: Rubén Sotoconil, Claudia Paz, Luis Alarcón, Shenda Román, Luis Vilches, Delfina Guzmán
Duração: 63 min.

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