Depois de começar sua carreira com o sensacional Pacto Sinistro, sobre um homem que é assediado por um sociopata que quer convencê-lo de cometer os crimes perfeitos, Patricia Highsmith escreveu Carol (originalmente publicado com o título O Preço do Sal), uma semiautobiografia que aborda uma belíssima história de amor homossexual entre duas mulheres que ela publicou sob pseudônimo, retornando em seguida para suas “origens” e lidando novamente com sociopatia em Sem Saída, uma pouca lembrada história sobre desejos mortais e carnais que são atrapalhados por um protagonista afobado. Em seu quarto romance, O Talentoso Ripley, a autora, então, criaria seu personagem mais famoso, Tom Ripley, que figurou em outras quatro de suas obras, formando a chamada “Ripliad” e que pega emprestado elementos dos protagonistas de suas obras anteriores.
Tom Ripley, pode-se dizer, é o refinamento da abordagem psicológica doentia que Highsmith cultivou em Pacto Sinistro e Sem Saída, além de, conforme alguns biógrafos e ensaístas afirmam com bastante razão, um reflexo da própria persona reclusa, amarga e, para usar um eufemismo, extremamente complicada da autora. Ou, talvez melhor dizendo, Ripley é Highsmith idealizada por ela própria, um personagem construído cuidadosamente para ser agradável, simpático, cativante e inteligente de forma a fisgar o espectador e a torná-lo digno até mesmo de admiração, como se ela quisesse dizer – e tenho para mim que queria – que há um sociopata em todos nós. Afinal, se nos dispusermos a enxergar não muito abaixo da superfície de Tom Ripley, encontraremos um homem odioso, que se deixa corroer de inveja, de insatisfação com tudo o que tem e com tudo o que não tem e cujos sentimentos ele consegue enterrar atrás de sorrisos e elucubrações mentais que procuram validar suas ações.
No romance, Ripley é um jovem e insatisfeito funcionário público de baixo escalão que vive de pequenas fraudes e que, em um belo dia, é convocado por um magnata que acha que ele é um grande amigo de seu filho Dickie Greenleaf para viajar até Mongibello (uma cidade fictícia na Itália inspirada em Positano e outras semelhantes) e convencê-lo a retornar para Nova York. É uma oportunidade de ouro que cai em seu colo e que ele abraça com fervor, obviamente exagerando suas conexões com Dickie para aproveitar-se do que o dinheiro pode proporcionar. Ao chegar na cidadezinha italiana, Ripley usa seu charme para aproximar-se de Dickie e de sua amiga Marge Sherwood, não demorando a ser convidado a ficar na casa do jovem herdeiro e a usufruir do bom e do melhor, o que desperta nele – ou amplifica nele, talvez seja mais correto afirmar – sua vontade de permanecer desta forma pelo resto da vida, custe o que custar.
O que encanta no romance é que Highsmith, como em suas obras anteriores, permanece constantemente na mente de seu protagonista e faz dele não um mestre enganador e fraudador, mas sim uma pessoa falha (para além das falhas de caráter e a sociopatia, quero dizer) que aprende na medida em que progride com seus planos normalmente mal ajambrados e improvisados, mas que sempre demonstra capacidade de improviso que o permite corrigir o curso com todas as peças em movimento sem que detalhes como moralidade ou sentimentos nobres atrapalhem seu objetivo. Por essa razão, é perfeitamente possível notar que a jornada de Ripley é turbulenta e dependente de uma combinação de ação no momento certo – ou no único momento possível – com sorte, algo que poderia ser traduzida, na literatura, como conveniências da história para tornar possível esse ou aquele fim.
E não há dúvidas que a narrativa de Highsmith é repleta de conveniências, mas, como ela se agarra à mente de Ripley, o que vemos, na verdade, são racionalizações por vezes efetivamente inteligentes, outras vezes completamente doentias, que seu protagonista usa para explicar os acontecimentos. Há um evidente niilismo nele, uma vontade mais forte que ele de aproveitar tudo ao máximo e imediatamente, sem se preocupar com o amanhã e essa talvez seja sua característica mais humana e, portanto, mais facilmente identificável, ainda que, no conjunto, ele não deixe de ser uma pessoa repugnante ou, cinicamente afirmando, uma pessoa que é repugnante por ser possível nos ver nele e por rejeitarmos essa noção.
Assim como em Pacto Sinistro, há um subtexto homossexual que Highsmith pronuncia mais diretamente em O Talentoso Ripley e que leva a acusações sobre a conexão entre homossexualidade e desvio psicológico, mas tenho para mim, considerando sua bibliografia, que a autora é uma espécie de “ofensora justa ou de oportunidades iguais”. Em outras palavras, como ela, em sua vida real, desgostava de tudo e de todos, inclusive e especialmente de minorias, não descontando a minoria em que ela própria se inseria, ela faz não me parece ser algo mirado com exclusividade para esse ou aquele grupo. Além disso, a natureza de gay enrustido de Tom Ripley não só se faz presente nos diálogos e em seus desejos, como parece ser um elemento que alimenta o fogo de seu descontentamento interno, um sentimento que Highsmith provavelmente compartilhava de uma maneira ou de outra e que empresta mais camadas ao seu já bastante complexo protagonista.
Patricia Highsmith demoraria ainda 15 anos para retornar ao seu personagem, para reconhecer de verdade que ela chegou à sua criação máxima ainda bem cedo em sua carreira literária. Seu Tom Ripley é um monstro – aqui ainda em seu “início” -, mas um monstro irresistível que salienta tudo o que todos nós temos de pior, mas que fazemos questão de afirmar, com toda a certeza do mundo, que nunca, em circunstância alguma, agiríamos ou sequer pensaríamos como ele. E o sucesso do personagem em adaptações variadas ao longo dos anos, começando já em 1956 com um episódio de Studio One, uma série de TV em formato de antologia, deixa isso bem claro para quem se dignar a parar para pensar sobre o jovem vigarista que quer tudo sem abrir mão de nada.
O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley – EUA, 1955)
Autoria: Patricia Highsmith
Editora original: Coward-McCann
Data original de publicação: 30 de novembro de 1955
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Tradução: José Francisco Botelho
Páginas: 336