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Crítica | O Sumiço da Santa, de Jorge Amado

Ironias e ambiguidades numa história fantásticas sobre intolerância, racismo e sincretismo religioso.

por Leonardo Campos
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Publicado em 1988, O Sumiço da Santa é um dos últimos, e melhores trabalhos, do escritor baiano Jorge Amado. O autor de Dona Flor e Seus Dois Maridos, Tenda dos Milagres e tantas outras histórias que envolvem a fusão entre elementos da realidade e características “fantásticas” entrega neste enredo as suas habituais críticas sociais mescladas com o tom irreverente da travessia de tipos que compõem um extenso painel de conflitos e coexistência. Desta vez, um pesquisador sai com a imagem de Santa Bárbara para uma exposição no Museu de Arte Sacra em Salvador. Junto ao personagem, temos um casal de párocos e um padre. Ao chegar por aqui, por sua vez, a imagem se transfigura em Yansã e sai pelas ruas da cidade, espalhando encantamentos e permeando as diversas histórias conflitantes das múltiplas figuras ficcionais que habitam a narrativa que versa, dentre tantas coisas, sobre intolerância religiosa, valor patrimonial de bens históricos, racismo, sincretismo religioso, além das memórias de um país que viveu longos anos de opressão diante da ditadura militar.  Riquíssimo em seus debates sobre mestiçagem e diversidade cultural, o romance também é um deleite para amantes da literatura, um texto que flui vertiginosamente, sem monotonia, longe do pernóstico.

Como habitualmente faz em suas publicações, Jorge Amado elabora, em O Sumiço da Santa, um extenso painel de histórias e personagens, alguns com maior destaque. A trajetória de Adalgisa e sua sobrinha é uma delas, a mais proeminente do enredo, pois dialoga muito com os conflitos gerais estabelecidos pela narrativa. Católica fervorosa e controladora, a mulher entra em colapso para criar a jovem Manoela, uma figura ficcional que vai dar muito trabalho ao sair da linha retilínea delineada pela tia e aderir aos princípios do candomblé, sendo até internada em um convento pela religiosa. Há também a história do padre Abelardo Galvão, considerado subversivo por muitos por causa de seus trajes modernos. Outro destaque interessante é a jornada do intelectual Dom Maximiliano Von Gruden, homem que desenvolve uma tese sobre a imagem ter sido concebida por Aleijadinho. Em pânico, o intelectual vê a defesa de sua teoria cair por terra com o sumiço em questão, reinstalando a sua tranquilidade apenas próximo ao desfecho.

Ademais, seria leviano falar de O Sumiço da Santa sem destacar as questões acerca do Realismo Maravilhoso, presentes ao longo de todas as páginas do romance. Jorge Amado, ciente do sincretismo religioso da região, uma terra onde a verossimilhança e o sobrenatural convivem harmoniosamente traz para a história a mescla de mestiçagem com o dualismo entre a fé católica e a prática das crenças do candomblé. O escritor tece, de maneira brilhante, com o seu tom jocoso, expressões da fala popular e os habituais palavrões, adornados por erotismo, um enredo com eficiente integração entre o sistema de fé e a realidade cotidiana dos personagens, num desenvolvimento narrativo sem conflitos: ora Santa Bárbara se posta em “cena”, dando benção para uma freira, ora Yansã é saudade por seus praticantes. É uma eficiente construção de realidade própria da cultura baiana, mística, sincrética e permeada pela mixagem de povos e suas contribuições de formação, afinal, milagres e encantamentos, salvaguardadas as devidas proporções, não causam nenhum tipo de assombro por aqui, sendo um fenômeno cotidiano.

Yansã, no candomblé, é cultuada como orixá dos ventos, dos raios e das tempestades, sincretizada ao símbolo católico da mártir Santa Bárbara, mundialmente conhecida pelos praticantes do catolicismo Romano e Ortodoxo como a protetora contra relâmpagos e fenômenos meteorológicos intensos. No romance, elas são apresentadas por meio da ambiguidade irônica e humorada que constantemente permeia as obras de Jorge Amado: enquanto a católica é branca, europeia, a versão local perde o seu aspecto “solene” e “clássico” para ser uma mulher com as curvas arredondadas, sensualizada conforme os ditames dos estereótipos da cultura baiana. Nesta junção harmônica entre o natural e o sobrenatural, o escritor transcende as leis empíricas e cria uma atmosfera de causalidade interna repleta de magia, algo que, por sua vez, não cria conflitos entre o que é tido como real e aquilo encarado como irreal. Nós, leitores, entramos neste pacto proposto pelo autor, trafegando por este mundo de “faz de conta” com leitura fluída, divertida, repleta de contundentes críticas sociais, sem precisar buscar nos ditames da racionalidade as explicações para os questionamentos tecidos pelo narrador.

Em linhas gerais, uma leitura prazerosa, escrita na fase de maturidade literária de Jorge Amado.

O Sumiço da Santa (Brasil) — 1988
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
537 páginas

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