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Crítica | O Senhor dos Mortos (2024)

Observação macabra.

por Luiz Santiago
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O cinema de David Cronenberg a partir dos anos 2010 ganhou uma característica divisória entre seu público cativo, com filmes que, mesmo mantendo a essência daquilo que o diretor sempre gostou de fazer no cinema, estava interessado em apresentar camadas mais contemporâneas, talvez até mais filosóficas que o comum. Particularmente, o último filme do diretor que realmente gostei muito foi Senhores do Crime (2007) e de lá para cá, sempre fico dividido e relativamente frustrado ao final de cada nova sessão cronenbergiana, não sendo diferente neste O Senhor dos Mortos (2024), o body horror tecnológico e cheio de camadas interpretativas do diretor.

Há uma forte abordagem biográfica aqui. Em 2017, após 38 anos de casado, Cronenberg perdeu sua esposa, Carolyn Zeifman. Em entrevista concedida à Variety, em maio de 2024, comentando sobre The Shrouds, o cineasta disse que estava escrevendo o filme enquanto experimentava a dor da perda da esposa, o que faz da obra uma espécie de filme-terapia, colocando em cena um empresário chamado Karsh (Vincent Cassel, numa interpretação muito forte) que criou um cemitério onde as pessoas podem ter acesso ao corpo em decomposição de seus entes queridos, enterrados em mortalhas tecnológicas que fazem radiografias e permitem acesso ao interior do túmulo via aplicativo. É uma proposta que faz jus à obra do artista e que, a despeito do componente macabro e estranho a qualquer um de nós, é verdadeiramente fascinante.

O que se esconde em O Senhor dos Mortos é a incapacidade de Karsh verdadeiramente aceitar o falecimento da esposa. Ao longo do filme, percebemos também que a relação estava pautada em dependência emocional, o que explica a dificuldade do empresário em aceitar o fim da vida. No decorrer do filme, ele justifica a ação dizendo que esta é uma forma de processar mais facilmente a perda e de lidar com luto. Na prática, esta é uma prisão de alta tecnologia, com acesso remoto, encriptado, e que o impede de olhar para o mundo de maneira realista, reforçando outro comportamento que também tenta ocultar, mas que a direção faz questão de reforçar via imagens: o viúvo se considerava dono absoluto do corpo de Becca (Diane Kruger), e essa possessão era tão imensa, que não foi capaz de dissipar-se nem durante a doença, os amputamentos e a morte da mulher.

Toda a direção é pensada em termos visuais de “espionagem industrial”, adicionando algumas camadas estéticas muito bonitas (desde a fantástica abertura que me fez pensar brevemente no estilo sokuroviano) às diversas teorias da conspiração que se desenvolverão na fita. Cada ambiente da vida de Karsh parece propositalmente imitar um universo cultural diferente, do clássico japonês ao brutalismo e futurismo, formando composições da direção de arte que nos faz encher os olhos e que recebem do diretor passagens cuidadosas da câmera, fazendo com que cada lugar também seja visto como parte da obsessão identitária do protagonista, que coleciona atmosferas, sensações e corpos, transformando tudo isso… em negócio. Nem mesmo no sonho ele consegue se ver livre, e só passa a rejeitar parte dessa possessão onírica quando acredita que está sendo enganado, quando parece estar perdendo o controle das coisas que desejava dominar, algo que ele jamais permite.

Cronenberg cozinha essa realidade em fogo lento, dissecando as camadas psicológicas, afetivas e instintivas do protagonista, colocando alvos possíveis em seu cotidiano através de situações conspiratórias que se enlaçam e não chegam a lugar nenhum. Se houvesse um propósito para essa confusão e para a ausência de respostas, não teria problema algum; pelo contrário, a ideia do filme se aproximaria de um suspense macabro provavelmente com final aberto. Mas o círculo de ideias malucas em volta do personagem é só mais uma das indefinições da fita, que não conclui o arco de carência, isolamento e fingimento de superação do homem, que cada vez mais parece afundar em situações de morte, corpos em decomposição e faturamento milionário disposto a pisotear a natureza, a fé e a política de países interessados em seus serviços. 

A última sequência do filme, que para qualquer espectador seria o início de uma escalada até o clímax, traz um encerramento precoce, com o enredo reticente, aberto a uma quantidade tão grande de especulações que não se pode aceitar como válido. Temos como positivo o fato de que a mão do diretor em toda a condução do filme é certeira, mas esse resultado acaba se diluindo parcialmente na falta de um propósito para a ideia central. As mortalhas de Karsh são apenas uma forma de expandir o seu controle sobre as coisas. Não contente em dominar pessoas e as situações em vida, ele estende a sua mão para a observação da morte, um comportamento voyeur e tétrico que talvez explique o porquê de o personagem ter suas visões com mulheres amputadas, frágeis e dispostas a entregar sexualmente seus corpos doentes a ele. O medo de perder o que gosta, a necessidade de controlar os outros e ganância financeira se confundem com uma tentativa de aplacar a dor — que parece genuína, mas definitivamente não é a única coisa em questão. E mesmo com tudo isso a se considerar, o diretor resolveu abandonar o filme cerca de dez minutos antes de ele realmente terminar. Pelo menos nisso, até onde a gente sabe, Cronenberg não tem nada a ver com Karsh. Porque se tem uma coisa que ele não faz questão de controlar é a compensação e o verdadeiro encerramento das percepções alteradas de mundo de seu senhor dos mortos. O filme morre, para então ser escrutinado. Exatamente como os cadáveres nas mortalhas tecnológicas da obra. 

O Senhor dos Mortos (The Shrouds) — Canadá, França, 2024
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Vincent Cassel, Diane Kruger, Guy Pearce, Sandrine Holt, Jennifer Dale, Al Sapienza, Elizabeth Saunders, Ingvar Sigurdsson, Steve Switzman, Eric Weinthal, Matt Willis, Jeff Yung
Duração: 120 min.

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