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Crítica | O Segredo dos Seus Olhos

por Marcelo Sobrinho
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Apaixonar-se é criar uma religião com um deus falível.
Outras Inquisições, de Jorge Luis Borges

É frequente se atribuir à qualidade dos roteiros o enorme êxito que o cinema argentino vem obtendo ao longo das últimas décadas. O cinema de nossos vizinhos se destaca como o melhor da América do Sul e, possivelmente, da própria América Latina. Mas é falacioso pensar que só de roteiristas extremamente talentosos vive a produção cinematográfica daquele país. Acredito que, se A História Oficial, de 1985, é o primeiro grande marco na história do cinema argentino, o segundo é mesmo O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella (que ainda tem em seu currículo o ótimo O Filho da Noiva). Campanella, com seu filme de 2009, fez o mundo compreender que o traquejo de seus compatriotas para escrever excelentes roteiros poderia vir acompanhado de uma direção igualmente esfuziante. O Segredo dos Seus Olhos é, para mim, o melhor trabalho de direção que o cinema argentino já produziu.

O cineasta portenho se vale de um gênero de cinema completamente desgastado por produções de baixa qualidade e que repetiram à exaustão todos os seus clichês típicos – o gênero policial. Mas Campanella consegue revivê-lo ao lhe dar nova forma e novo conteúdo. O ambiente de escritórios e tribunais ressurge muito mais asfixiante (méritos também para a fotografia envelhecida e algo dessaturada de Félix Monti). Nele, a vida alheia é tratada de modo mecânico e fabril. É nesse espaço que Benjamin Espósito (Ricardo Darín) construiu toda a sua carreira. Aterroriza-lhe a aproximação com aquilo que há no cerne dos casos que investiga – as paixões humanas e a ruína que elas podem causar na vida de todos. O oficial de justiça aposentado vive uma paixão silente por uma colega de trabalho – Irene Hastings (Soledad Villamil). Nunca ousou confessá-la, como quem teme o primeiro disparo de uma cadeia irrefreável de desgraças, que só nossas paixões poderiam produzir.

Campanella resgata ainda características que lembram os filmes noir, muito populares nos EUA durante as décadas de 40 e 50. Mas ao contrário de algumas homenagens explícitas ao gênero, como a de Steven Soderbergh no medíocre O Segredo de Berlim, o filme do diretor latino-americano apenas coloca na tela aquilo que realmente funciona e que lhe serve de ferramenta para construir uma obra com referência, mas também com frescor e estilo próprios. A trama cercada de suspense, crime, amores, reviravoltas e com pano de fundo político (a ditadura argentina) tem forte sabor noir. Alguns planos inclinados, chamados ainda de “holandeses”, também surgem aqui e acolá, sem qualquer exagero ou obsessão estética. Mas, no restante, o filme respira mesmo vida própria e encanta pela inventividade de seu realizador.

O roteiro é construído em flashbacks do começo ao fim, um procedimento narrativo que poderia facilmente quebrar o ritmo com que o thriller argentino é desenvolvido. Mas felizmente, isso não ocorre. Todo o enredo de O Segredo dos Seus Olhos vai ganhando mais corpo a cada cena, em um crescendo que captura facilmente o espectador e que culmina em uma cena final assombrosa. Acachapante. O famoso plano-sequência que Campanella constrói na cena do estádio de futebol é um dos momentos de maior beleza e plasticidade técnica que o cinema viu neste século. Para quem estuda cinema ou simplesmente se interessa por entender mais de sua feitura, esse momento já vale por si só, entrando facilmente na galeria dos planos-sequência mais belos e difíceis já realizados. Mas o diretor não gasta seu empenho com nenhum virtuosismo vazio. Há diversos momentos em que sua câmera se posiciona discretamente na altura dos olhos de seus personagens. Ali, Campanella nos convida a lê-los. A desvelar seus segredos e a nos encontramos com as paixões que eles revelam.

E O Segredo dos Seus Olhos é exatamente sobre isso. Sobre as paixões, analisadas sob o signo da loucura. No filme de Campanella, todos os protagonistas padecem de suas paixões como doentes consumidos por suas moléstias. Isidoro Gómez (Javier Godino) transformou uma paixão de infância em um crime hediondo. Ricardo Morales (Pablo Rago), o noivo desgraçado, converteu seu amor incomensurável por Lilliana Colloto (Carla Quevedo) em um gozo de vingança igualmente sem medida. Pablo Sandoval (Guillermo Francella), o fiel assistente de Espósito, tem no vício do álcool o seu excesso (uma enorme esperteza do roteiro pôr lado a lado a necessidade física de um viciado e a psíquica de um apaixonado). No longa-metragem, as paixões escravizam, entorpecem e consomem vidas inteiras, encarceradas pelo desejo. E o filme sabe trabalhar essas ideias com expertise, já que não faz qualquer diferença entre o enclausuramento físico e o psicológico (o final surpreendente atesta isso muitíssimo bem).

Por fim, o roteiro nos oferece uma interessante pista para compreendermos melhor seu personagem principal. Nos primeiros minutos de projeção, sabemos que faltava a letra “a” na velha máquina de escrever de Espósito. No desfecho do filme, ao deixar clara a sua decisão de viver seu amor por Irene, ele escreve à mão a letra faltante na palavra “Temo”. Surgem, então, as duas palavras que ele havia sufocado por longos 25 anos – “Te Amo”. Ao solucionar seu caso final, o antigo funcionário da justiça argentina, agora sexagenário e tendo presenciado a bancarrota de todos os que enlouqueceram de paixão, opta surpreendentemente por correr o mesmo risco. Em Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdã louva a loucura como a força vital que nos leva a estabelecer laços para longe de qualquer razão e a experimentar a vida como deve ser vivida, isto é, em sua saudável e necessária insensatez. À luz de Roterdã, podemos entender que o que Espósito faz é renunciar à sua condição de homem curado. O protagonista parece compreender, enfim, que curar-se demais é também um terrível adoecimento.

Escreve o poeta mexicano Octavio Paz em seu célebre ensaio A Dupla Chama – Amor e Erotismo: “No amor aparece o mal: eis uma sedução mórbida que nos atrai e nos vence”. O que Juan José Campanella faz em sua mais importante obra é nos dar as chaves do castelo para compreender que se lançar às paixões, sem culpas nem diligências, é também humanizar-se. Se uma paixão jamais muda, como afirma Sandoval, o melhor mesmo é entregar-se a ela. Render-se a essa atração imorredoura. Declarar-se, enfim, como vencido.

O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de sus Ojos, Argetina/Espanha – 2009)
Direção:
Juan José Campanella
Roteiro:
Juan José Campanella, Eduardo Sacheri
Elenco:
Ricardo Darín, Soledad Villamil, Carla Quevedo, Pablo Rago, Javier Godino, Guillermo Francella, Mariano Argento, Mario Alarcón
Duração: 129 min.

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