Minha experiência com a leitura de O Segredo das Lantanas foi a de uma criação intensa (e progressiva) de curiosidade sobre personagens e famílias, que logo deu lugar a um espanto genuíno; a um pouco de confusão na reta final, e a uma estranha sensação de estar espiando algo que não deveria espiar. Em seu romance de estreia, Rafael Martins adota uma linguagem próxima do cotidiano do leitor e um ritmo de eventos que vai pouco a pouco se acelerando, juntamente com a intensificação da seriedade dos assuntos. Daquilo que parece ser uma noite comum, deriva-se uma sequência de pesadelos, irritantes interrupções de sono e, por fim, a chegada da insônia para Humberto, situação que trará consigo um número muito grande de novidades e pistas para o que será abordado na segunda parte.
O fascínio pela obra vem justamente na mistura entre aquilo que está dito de maneira crua, com diálogos diretos, muitas vezes cortantes e agressivos (em diversos níveis, inclusive com passivo-agressividade) e aquilo que não se diz, mas está posto nos parágrafos, nas conversas, nas situações. Cenas que servem de pequenas migalhas de conteúdo, para que o leitor as apanhe e chegue a uma conclusão baseada em certos indícios fornecidos pelo autor. Tem peso o fato de nem tudo ser automático, na leitura; e o fato de que um encaminhamento mais direto poderia trazer benefícios para o impacto pretendido pelo autor, no momento das grandes revelações. No entanto, fica clara a proposta dele em brincar com o mistério, com a dúvida e com a confusão dos relatos (notem a maneira como o livro explora aquilo que é dito ou escondido em sociedade. No cotidiano, essas denúncias ou suspeitas “de boca em boca” são realmente confusas, como um telefone sem fio de infâmias). Aí vai mesmo da tolerância de cada leitor para lidar com esse caminho narrativo. Eu gostei muito, mesmo sendo atingido por alguma estranheza.
Humberto é um personagem construído como um homem comum, dotado de visões problemáticas muito conhecidas (especialmente o machismo) e que procura viver uma vida mais ou menos em paz, recluso em seus traumas de infância e ativo em sua libido com ramificações questionáveis, fetiche e frustração. O leitor vê nesse “macho escroto” a figura da “banalidade do mal“: o cidadão simples, com defeitos mais ou menos aceitos pela massa social que o cerca, com vício em trabalho, pensamentos de vingança que nunca executará e memória de coisas que forjaram a sua personalidade e seus desequilíbrios emocionais; mas ao mesmo tempo, um cidadão com segredos que “só ele” sabe. No martírio da privação de sono, essas coisas são exibidas devagar, formando uma figura que passará por um escrutínio histórico e de memória social na segunda parte, depois de um evento inesperado que certamente chocará o leitor: a primeira de muitas vezes que isso acontecerá no livro.
Por tudo o que representa, e após uma construção de abertura muito bem feita, a parte dois da obra é uma viagem intensa e cheia de desafios, certamente a minha favorita. O conteúdo das cenas é mais detalhado e o andamento mais intenso, exigindo do leitor muita atenção na ligação entre os pontos dos dramas internos da obra. Os diálogos ganham maior substância (tudo parece muito importante) e os sentimentos das pessoas são exibidos genuinamente, sem a superficialidade proposital da primeira parte, onde o incômodo físico e as projeções para o dia seguinte toma conta do ambiente. Em O Segredo das Lantanas, fantasmas do passado são desenterrados à medida que se sepultam monstros do presente, tornando o livro um vendaval de situações tão fortes e tão doloridas (por serem um espelho da vida real) que deixarão o leitor parado, em reflexão amargurada e existencial, por algum tempo.
O Segredo das Lantanas (Brasil, 2022)
Autor: Rafael Martins
Capa: Roseli Vaz
Editora: Patuá
105 páginas