O Segredo das Águas (2014) talvez seja o longa de ficção mais “acessível ao grande público” dirigido pela diretora japonesa Naomi Kawase até o momento. Obra delicada e poética, o filme aglutina de maneira cativante tudo aquilo que a diretora tem realizado ao longo de sua filmografia, apresentando também algumas escolhas diferentes dessa zona de conforto como as sequências em Tóquio (o ambiente metropolitano não é o foco de atenção da cineasta), sem nunca perder a identidade estética — de caráter cru — e proposta temática.
Natureza, família, vida e morte. Tradição. Se analisássemos os filmes de Kawase de Em Seus Braços (1992) a O Segredo das Águas (2014), teríamos claramente um modelo principal de identificação, um conteúdo explorado pela diretora de forma textual e visual e que acaba tornando suas obras uma viagem íntima (para ela e para o público), poética e ontológica, sempre trazendo contrapontos dramáticos e colocando em discussão o sentido da vida e a relação do homem com a natureza.
Em O Segredo das Águas isso aparece através do dois jovens protagonistas, Kaito e Kyoko. Em torno deles, um velho pescador, um pai apegado às tradições e outro em procura de sua liberdade como artista; uma mãe xamã à beira da morte e outra tentando levar a vida após a separação. Kaito é um garoto de 16 anos que tem medo do mar e é sempre muito calado. Kyoko tem uma relação vital com o oceano e se expressa tanto pelo diálogo quanto pela música. Ele é tímido em relação ao amor. Ela é desprovida de barreiras e deixa vir à tona o desejo por ele. Nestes contrastes entre personagens, Kawase tece uma teia muito bonita de amadurecimento ou entendimento de uma realidade, transformando o filme em uma pequena grande lição sobre aceitação e adaptação ao novo.
Através de uma estética realista, com fotografia sem explosões de luz e destaque para ambientes ou interiores mais escuros — a sequência noturna quando o furacão chega à ilha de Amami é uma das mais belas do filme, tanto pelo desespero e arrependimento de Kaito quanto pela tocante sequência que se segue, quando pai de Kyoko fala com o garoto sobre o que é o mar, citando um ensinamento budista –. É interessante vermos como os elementos se agrupam na tela (a montagem de Tina Baz ao lado da própria Naomi Kawase é exemplar), tornando eventos simples em algo com grande significado. O espectador aos poucos compreende a intenção da diretora e encaixa as peças do pequeno quebra-cabeças que é o enredo (como símbolo), mas chega à conclusão de que o verdadeiro mistério é escondido pelo roteiro. Somos convidados a refletir através da observação da natureza e do espírito humano. Poucos filmes hoje possuem um caminho dramático tão belo e tão inspirador.
Nomeado à Palma de Ouro no Festival de Cannes (2014), O Segredo das Águas é um exemplo ímpar de delicadeza, despertar da sexualidade e primeiros encontros dos jovens com os muitos desafios da vida. Ao longo do filme, dois exemplos de família e alguns comportamentos (de gênero, de compressão do mundo, caráter, etc.) são explorados pela diretora e roteirista, levando-nos da prisão à total liberdade. Se há um tropeço, ele se localiza no início do filme, apenas durante a apresentação dos personagens. A partir deste ponto, presenciamos a construção de uma poesia em movimento, cuja conclusão se dá com um simples (mas esplêndido) efeito visual, arrancando um suspiro do público, que, enfim, solta o fôlego após um doce mergulho.
O Segredo das Águas (Futatsume no mado) — Japão, 2014
Direção: Naomi Kawase
Roteiro: Naomi Kawase
Elenco: Nijirô Murakami, Jun Yoshinaga, Miyuki Matsuda, Tetta Sugimoto, Makiko Watanabe, Jun Murakami, Hideo Sakaki, Sadae Sakae, Kazurô Maeda
Duração: 120 min.