Filmes sobre samurais e a sua cultura normalmente carregam um discurso de honra. Sejam longas tipicamente de chanbara (lutas de espada), obras que romantizam o modo de vida samurai como um heroísmo épico, ou até mesmo histórias realistas que retratam as dificuldades de pobreza, servidão e injusta ordem social do período dominado por Xoguns, majoritariamente colocam o orgulho e a integridade em foco. Em 2002, Yoji Yamada, cineasta japonês conhecido por filmes de comédia/melodrama japoneses da cinessérie Tora-san, decidiu criar seu próprio conto bucólico sobre o drama da honra samurai retratado há décadas no Cinema Nipônico, em um interessante paralelo visual e narrativo da relação conturbada entre honra pessoal e social.
O Samurai do Entardecer acompanha o samurai de baixo escalão Seibei (Hiroyuki Sanada), um viúvo que passa os dias trabalhando como contador, controlando o inventário de peixes secos e outros alimentos armazenados na sua vila, e as noites exercendo sua atividade de fazendeiro, enquanto também faz bicos como vendedor de gaiolas de pássaros/insetos, para poder sustentar suas duas filhas pequenas e a mãe doente. Por causa da árdua rotina, o protagonista não tem tempo para sair com seus “amigos”, recebendo o apelido de “crepúsculo”, pois precisa correr à sua casa ao anoitecer por causa de seus deveres familiares. A falta de tempo faz com que Seibei fique desleixado com suas roupas (sempre rasgadas) e sua higiene e aparência (sujo e descabelado), sendo constantemente humilhado por seus colegas de trabalho, superiores e outros membros da comunidade por sua falta de decoro social.
Dessa forma, Yamada está sempre colocando em conflito a integridade de Seibei em dois ambientes: o íntimo e o público. Na verdade, o drama do protagonista tem como cerne o sacrifício do personagem principal em relação a seu status social para assistir sua família. Praticamente uma antítese de Zatoichi ou do samurai clássico que estamos acostumados a ver no Cinema, o heroísmo de Seibei está nos pequenos atos cotidianos, como quando senta nas escadas da sua humilde casa e vê suas meias rasgadas, ou nas várias sequências que o vemos trabalhando com suas filhas longas horas da noite fazendo pequenas gaiolas de madeira.
Yamada, tal qual Yasujiro Ozu, cultiva uma experiência cinematográfica do essencial. Momentos fugazes da rotina familiar feudal, como o plantio e um bule de chá esquentando, ou então situações simples de grande importância para Seibei, como quando ele tem seus cabelos amarrados e o quimono ajustado, preenchem a tela com o significado e o valor do que é verdadeiramente fundamental. A inserção narrativa de Tomoe (Rie Miyazawa), amiga de infância de Seibei e recentemente divorciada de um marido abusivo, adiciona uma camada romântica à já terna e bucólica poesia audiovisual de Yamada. Entre tons e cores suaves, a direção naturalista e a narração carinhosa da filha de Seibei, O Samurai do Entardecer se transforma em uma genuína experiência da dignidade cotidiana de Seibei.
Além disso, por se passar no Japão durante a Restauração Meiji, período de derrubada do Xogunato, o longa é um grande exercício de mudança para a cultura samurai. Vemos essa transição histórica em várias sequências inteligentes, como soldados aprendendo a usar armas de fogo em meio a natureza tranquila, e também narrativamente, no arco de maior autonomia feminina de Tomoe (ainda que desenvolvido superficialmente), a proibição de duelos samurais e nos conflitos políticos que servem de pano de fundo à obra. Mas vemos isso principalmente no ato final que Seibei precisa assassinar outro samurai a mando do seu clã, em um duelo mais lembrado pelos diálogos de dois homens em conflito com as mudanças históricas a sua frente e aos costumes impostos por uma ordem social injusta, do que pelo embate de espadas. No fim, O Samurai do Entardecer tem seu desfecho com o legado socialmente trágico de Seibei, a personificação de uma cultura desaparecendo, ao mesmo tempo que demonstra a herança familiar amorosa de um samurai inesquecivelmente honroso.
O Samurai do Entardecer (たそがれ清兵衛, Twilight Seibei) – Japão, 2002
Direção: Yoji Yamada
Roteiro: Yoji Yamada, Shuhei Fujisawa, Yoshitaka Asama
Elenco: Hiroyuki Sanada, Rie Miyazawa, Nenji Kobayashi, Ren Osugi, Mitsuru Fukikoshi, Hiroshi Kanbe, Miki Itō, Erina Hashiguchi
Duração: 129 min.