Recebi a difícil, quase impossível missão de fazer a crítica do último filme de Andrei Tarkóvski, diretor russo que viria a falecer alguns meses depois de finalizar O Sacrifício. A tarefa é duplamente complicada, pois a filmografia do diretor, apesar de muito curta, é celebrada por todos, mas eu assisti a apenas três de seus filmes, e todas as três vezes tive dificuldade de verbalizar aquilo que sentira.
No entanto, tenho para mim que Tarkóvski é muito mais para ser sentido do que para ser explicado, esmiuçado, detalhado. Para um diretor que sempre disse que passou “a vida dirigindo um único filme”, Tarkóvski faz um lindíssimo e tocante epitáfio para coroar seu trabalho e seu legado ao mundo.
Imaginem uma pessoa exilada de seu país natal, longe de seu filho que foi proibido de deixar o país e que teve um de seus filmes (Nostalgia) impedido de ganhar a Palma de Ouro em Cannes pelos soviéticos. Agora imaginem que essa mesma pessoa que, mesmo sendo diagnosticada com câncer de pulmão em estágio terminal depois de encerrada a fotografia principal de O Sacrifício, insistiu em continuar com o trabalho de pós-produção na cama do hospital. Imaginem o que se passa na cabeça de alguém assim. Que tipo determinação e de devoção à sua profissão move alguém a trabalhar copiosamente até literalmente o último segundo de sua vida, longe de sua família e de seu país, em um projeto difícil e custoso?
Só por essas circunstâncias, O Sacrifício é um filme essencial. Difícil de assistir, difícil de mastigar, mas, mesmo assim, essencial. Muito o acharão lento, arrastado, um sonífero mesmo, já que o filme todo é pesado em diálogos, tem uma câmera bem afastada dos personagens na maioria do tempo, dificultando o envolvimento na trama e lida com aspectos metafísicos da fé, vida, morte, religião, lealdade, família e outros. Mas aqueles que se despirem do preconceito inicial, tenho certeza, conseguirão no mínimo apreciar o esforço do diretor e, no máximo, deixar-se envolver completamente pelo que ele tentou fazer.
Mas tudo começa com Ingmar Bergman.
Depois dos créditos de abertura completamente fixados em um detalhe da obra inacabada de Leonardo da Vinci, A Adoração dos Magos, representando a transposição do mundo pagão para o mundo religioso cristão, somos introduzidos a Alexander (Erland Josephson, famoso por trabalhar com Bergman) e seu filho pequeno mudo (em virtude de uma recente operação na garganta), sempre referenciado como “pequeno homem” (Tommy Kjellqvist) em um cenário naturalista fortemente “bergmaniano”, escolhido por Tarkóvski exatamente por ser próximo à ilha de Faro, onde o grande diretor sueco fizera vários de seus filmes.
Nessa sequência de pouco menos que 10 minutos, totalmente sem cortes e fotografada por Sven Nykvist, diretor de fotografia de Ingmar Bergman trazido por Tarkóvski especialmente para esse filme, vemos Alexander plantar uma árvore seca e ensinando ao seu filho que se a regar todos os dias, na mesma hora, pode ser que ela venha a crescer novamente. O carteiro Otto (Allan Edwall) chega para trazer uma carta de parabéns a Alexander e aprendemos não só que é seu aniversário como, também, que ele é jornalista, crítico literário e teatral e que é formado em estética. Aprendemos que ele considera sua relação com Deus como não existente.
E o choque do ateísmo com a religiosidade começa cedo, complicando a iconografia religiosa encabeçada pela obra de Leonardo da Vinci que vemos no começo. Afinal de contas, a oposição de religião e ateísmo, de certa forma, pode ser considerada como o conflito principal de O Sacrifício, quando Alexander, desesperado, faz uma oferenda a Deus.
Mas o que levaria um ateu fervoroso a procurar a ajuda de Deus? Com quase uma hora de filme, já com diversos personagens populando a isolada casa de Alexander, casa essa que fora construída especialmente para o filme, recebemos a notícia, pela televisão, que a 3ª Guerra Mundial começou.
O desespero que se segue a isso é palpável, destruidor mesmo, capaz de nos fazer sentir exatamente o que os personagens estão sentindo. É nesse momento do filme que vemos as sequências filmadas em planos médios, planos americanos e até em primeiro plano, quase um close-up. Esse é o momento em que Adelaide (Susan Fleetwood), esposa de Alexander, tem um ataque nervoso e tem que ser sedada.
No entanto, é nesse trecho que vemos a oferenda de Alexander a Deus em close-up e com uma câmera posicionada acima do ator (em plongê). Ele jura afastar-se de tudo que é mais sagrado à ele, incluindo seu amado filho e suas possessões materiais se o cenário de guerra fosse revertido. Acho que nunca vi uma reza ser tão magnífica e tragicamente capturada em celuloide.
Otto, que parece conhecer de tudo um pouco, diz que a única forma de conseguir isso seria fazendo amor com Maria (Guðrún Gísladóttir), empregada islandesa de Alexander que, momentos antes, havia ido para sua própria casa. Outra oferenda? Bruxaria? Um ateu que fez uma promessa a Deus tem que se oferecer a uma bruxa chamada Maria para reverter o quadro calamitoso em que se encontra? É, novamente, a passagem do paganismo para o cristianismo retratada na obra de Da Vinci? Só perguntas e as respostas ficam como cada um dos espectadores.
Mas, a intrigante história que, sem dúvida alguma, é contada sem qualquer pressa por Tarkóvski, talvez seja até um coadjuvante para suas imagens. O trabalho do diretor em compor o filme com diversas sequências longas sem cortes e do diretor de fotografia em manter cores frias e pesadas (Bergan novamente!) durante essas diversas sequências e trabalhando os planos gerais e conjuntos em contraposição com os médios e americanos é impressionante. O senso de desespero imagético que a dupla consegue criar no momento em que a desgraça se abate no mundo contraposto ao calor de quando Alexander vai procurar a bruxa e da luz de quando ele acorda no dia seguinte são sentimentos que, com certeza, ficarão na mente de cada um que assistir a essa obra, mesmo aqueles de não gostarem dela.
E claro, não poderia encerrar esses meus comentários sem falar do quase surreal plano-sequência final, iniciado com o sacrifício de Alexander. Vemos o ator e todo o resto do elenco em um plano geral longínquo, filmado sem cortes enquanto a enorme casa-cenário é tomada pelo fogo. E detalhe: essa gigantesca cena, envolvendo três carros, todo o elenco e uma casa em chamas, acabou tendo que ser filmada duas vezes, pois, na primeira, apenas uma câmera foi usada e ela acabou quebrando. Na segunda vez, que exigiu, claro, a reconstrução da casa, duas câmeras paralelas foram usadas, sendo que ela só acabou quando o rolo de filme acabou. O resultado é inacreditável.
Não sei se verbalizei tudo que captei do derradeiro filme de Tarkóvski, mas sei que não consigo descrever melhor o que senti vendo essa obra. O Sacríficio pode parecer hermético – e sim, ele o é diversas vezes – mas isso pouco importa para sua apreciação para todos aqueles que quiserem sair de sua zona de conforto e mergulhar no mundo “bergmaniano” de Tarkóvski, em seu filme-testamento.
O Sacrifício (Offret) – Suécia, França, Reino Unido, 1986
Direção: Andrei Tarkovski
Roteiro: Andrei Tarkovski
Elenco: Erland Josephson, Susan Fleetwood, Allan Edwall, Guðrún Gísladóttir, Sven Wollter, Valérie Mairesse, Filippa Franzén, Tommy Kjellqvist, Per Källman, Tommy Nordahl, Tintin Anderzon, Helena Brodin, Birgit Carlstén, Jane Friedmann, Miles Jonn-Dalton
Duração: 149 min.