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Crítica | O Rosto (1958)

por Luiz Santiago
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Convencimento e convicções. Estas são duas palavras muito importantes para a formulação de uma análise coerente sobre O Rosto, o segundo filme de Ingmar Bergman a contar com elementos macabros e de questionamento ou tentativa de entendimento da vida e da morte, tanto em teoria, quanto em sentido físico (o outro filme onde ele também abordou essas questões diretamente foi O Sétimo Selo). Mas apesar das semelhanças simbólicas e pelo fato de os dois longas também trabalharem a arte como um de seus padrões narrativos, O Rosto é mais sombrio, mais cruel e mais próximo a algo que podemos chamar de “terror”, impressão fortemente marcada pelo cenário sugeridamente medonho da direção de arte e pelos figurinos sombrios do século XIX, que é quando a história se passa.

Um grupo de atores viajam em seu coche, em direção a uma pequena cidade da Suécia. Eles estão fugindo da polícia, que considerou “perturbadora e de mal gosto” seus truques e apresentações na Noruega. Mais uma vez, esperam um novo começo como artistas. Este “Teatro de Saúde Magnética de Vogler” é formada por Albert Emanuel Vogler (Max von Sydow, que aqui representa um papel de “vendedor de ilusões e belas mentiras”, propositalmente um retrato autoanalítico de Bergman); Mr. Aman (Ingrid Thulin, vivendo um personagem que liga os diferentes “mundos individuais” encarnados pelo restante da trupe); Tubal (Åke Fridell, um mestre de cerimônias que muito bem pode representar toda a classe de agentes artísticos); Vovó Vogler (Naima Wifstrand, a “bruxa de 200 anos” que serve como consciência caótica do grupo) e o jovem condutor Simson (Lars Ekborg, que finge ter muito mais “experiência de vida” do que realmente tem).

A metalinguagem e as discussões sobre o papel do artista, o significado e alcance da arte; o que ela pode nos fazer sentir e sua importância para a comunidade já não eram temas novos na filmografia Bergman. No tom como ele coloca as questões aqui, porém, só havíamos visto algo um pouco parecido em O Sétimo Selo e em Noites de Circo. Desses, a tentativa de fazer comédia foi o que menos vingou e até mesmo o diretor disse, por diversas vezes, que ficou impressionado como o resultado final de O Rosto era macabro e cruel, a despeito de momentos de susto cômico, tal qual visto na cena onde o “fantasma” chega à cozinha da casa do Cônsul Egerman (Erland Josephson) para roubar vodka.

A fotografia do grande Gunnar Fischer, em seu penúltimo trabalho ao lado de Bergman (que se encerraria com O Olho do Diabo, dois anos depois), tem o papel de criar uma atmosfera de medo e ao mesmo tempo de cenário receptivo, fazendo da casa do Cônsul um grande palco onde cada cômodo recebe um grupo de indivíduos-atores encenando um ato da “peça da vida”. Os dois maiores destaque desse exercício de luz e criação de uma atmosfera que nos aprisiona vão para a incrível sequência da cozinha, após o jantar e durante a tempestade; e a angustiante sequência entre Vogler e o Dr. Vergerus, Ministro da Saúde (Gunnar Björnstrand, simplesmente soberbo em sua atuação), onde um persegue e assusta o outro para provar que a dramaturgia, o espetáculo e o fingimento dentro de um enredo realista podem fazer alguém acreditar em manifestações espirituais, deixando de lado a fé exclusiva na ciência, como é o caso do renomado Doutor.

SPOILERS!

Mesmo ambientada no século XIX, a película brinca com “medo anacrônicos” e superstições que não pertencem àquele tempo, mas que dão conta de uma tradição oral, fortemente mantida por saltimbancos e artistas em cidades pequenas. As vozes, conselhos e relatos do que viram “no mundo” têm um grande peso para os locais e, mais uma vez, o tema do filme se escancara. São expostas as máscaras e a mágica da arte, mistas de herança cultural e pitadas de ciência popular, aqui demonstrada no nome da Companhia (Teatro de Saúde Magnética de Vogler) e pelos frascos contendo líquidos milagrosos para ressaltar a libido e curar doenças. No meio de tanto engano, promessas e representações, o rosto de Vogler não se esconde mais. E sua máscara cai, sua voz é ouvida e o patetismo das situações de bastidores (como discussão entre casal, humilhação e necessidade financeira) se exibe.

O roteiro leva tão a sério essa representação de “milagres da arte” que desaponta na guinada completa e destoante de ritmo entre o desalento dos artistas e a chegada da glória e reconhecimento, nos últimos cinco minutos da projeção. Uma comendação da Corte sueca chega à casa do Cônsul, chamando Vogler e sua trupe para uma apresentação. A música ao violão — à maneira das trovas, como em A Mulher Veneziana — dá lugar à fanfarra e ao rápido encerramento da trama com um final feliz inesperado e mal colocado, uma mensagem de que “a arte sempre vence”. Pela direção de Bergman, a cena não deixa de ser boa. Mas seu surgimento nos últimos minutos e a interrupção brusca de um terreno que o roteirista passou o filme inteiro arando certamente é uma quebra bastante questionável. Mas talvez aí esteja o último golpe do diretor, mais uma vez tirando a máscara daquilo que “deveria ter sido uma comédia o tempo inteiro“. Assim como na obra, uma mágica acontece e uma nova face é vestida pelos atores. O espetáculo de suas vidas segue em paralelo ao espetáculo que eles criam para a vida dos outros. Até que um outro rosto, em outra situação, seja solicitado.

O Rosto (Ansiktet) — Suécia, 1958
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Max von Sydow, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Naima Wifstrand, Bengt Ekerot, Bibi Andersson, Gertrud Fridh, Lars Ekborg, Toivo Pawlo, Erland Josephson, Åke Fridell, Sif Ruud, Oscar Ljung, Ulla Sjöblom, Axel Düberg, Birgitta Pettersson
Duração: 101 min.

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