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Crítica | O Retorno de Mary Poppins

por Gabriel Carvalho
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“Nada está perdido para sempre, apenas fora de lugar.”

O quanto um grande clássico pode ser agregado por uma continuação que, na verdade, ninguém nunca esperou por assistir, décadas depois de Julie Andrews ser o rosto de Mary Poppins, marcante personagem da cultura popular, a própria protagonista da obra-homônima? O Retorno de Mary Poppins possui convincentes propostas que explicitam a necessidade dos seus responsáveis por retomarem sem medo, mais de cinquenta anos depois, a mesmíssima mitologia de outrora, poderosa para contos infantis – mas será que suficiente para os contos de um novo século? Quando é colocado sobre o inquestionável cerco do tempo, discutindo o que é anacrônico ou não, o que é ultrapassado ou não, as características acerca desse inesperado projeto de retomada do icônico ganham novas camadas, encaminhando o que tornou o clássico um clássico a um renascimento “espontâneo” de sua magnitude. Mary Poppins é transformada em uma super-heroína com plena capacidade de questionar a realidade, o espaço e o tempo, o que quer que seja preciso para que o encantamento aos olhos de uma criança sejam transportados a qualquer ser vivo existente e inexistente, em qualquer geração, com novas problemáticas e até novas músicas.

Um cineasta mais ambicioso do que outros responsáveis por comandarem certos projetos em meio a essa não tão recente onda de reviver antigos sucessos cinematográficos, Rob Marshall não quer apenas criar uma continuação a Mary Poppins, mas igualmente um clássico a ser complemento do original, sem recorrer, senão em pequenas melodias familiares, às canções que gerações aprenderam a amar, criando, em contrapartida, novas para que um outro mundo, com outras questões a serem pensadas, encontrem a utopia como escape e objeto de esperança – em um paralelo curioso, o Superman interpretado por Christopher Reeve é visto da mesma maneira pelo cinema, em uma gostosa mistura entre o anacrônico e o atemporal, porque, enfim, ambos os personagens são salvadores utópicos. O Retorno de Mary Poppins, reencontrando nos céus o mágico ser responsável por cuidar eternamente das crianças da Família Banks – uma nova geração desses meninos agora -, transforma a própria personagem em um mito ainda mais poderoso, não apenas presente em uma esfera do passado, contudo, necessário sempre que aquelas pessoas, ora crianças, ora gente crescida, precisarem de uma outra colherada de açúcar.

O drama, aqui, é mais carregado do que antes, porque a morte é uma das problemáticas a serem enfrentadas por Poppins, visto que Michael Banks (Ben Whishaw) perdeu sua esposa pouco tempo antes da jornada dessa obra começar, tornando todo o seu confronto com o banco mais pessoal e pungente, pois as coisas perdidas por essas pessoas não são, com justiça, encaradas com elevação – o inesperado sumiu. Uma pena que a correta “The Place Where Lost Things Go”, quando reprisada, não consiga estabelecer a comunicação entre o pai e as crianças de uma maneira realmente comovente, em um momento sentimental acerca de se enfrentar a morte. O roteiro, nessa situação e outras, não tem a mínima ideia do que apresentar como texto – algumas passagens, ademais, soam muito expositivas. Ben Whishaw, por exemplo, consegue ser um intérprete muito mais competente em “The Conversation”, mais contida, do que, chorando inconsolavelmente depois, ao repetir sentimentos que não são guiados por uma narrativa coerente. As canções, em outra instância, possuem decentes letras, porém, essa virtude poderia ser assimilada a melodias mais memoráveis. As composições são “pequenas” para um Mary Poppins.

O clássico, originalmente inspirado na literatura de P. L. Travers, encerrava-se com o engrandecimento cinematográfico em seu âmbito, provavelmente, mais puro: “Let’s Go Fly a Kite“, uma das composições mais inesquecíveis do já inesquecível Mary Poppins – enquanto essa continuação é encerrada, por outro lado, com “Nowhere to Go But Up”, interpretada maravilhosamente por Angela Lunsbury. O encerramento exemplifica do que se trata a guinada de Marshall por essa mitologia, enfocando-se mais nos personagens e muito menos na narrativa, porque narrativa, na realidade, quase não há mesmo, demasiadamente escanteada – as músicas são parte da narrativa em um musical. Como as referências ao filme de 1964 são inúmeras, determinados personagens recebem tratamentos especiais, que chegam até mesmo a emocionar, como é o caso do Almirante Boom (David Warner). O elenco sustenta uma obra com conteúdo, mas revestida de mensagens que parecem vagas, porque, reiterando, o musical possui um plot muito desconjuntado, sem conjugar tudo em uma ideia mais consciente do que se trata essa esperança inerente à chegada da protagonista. Os personagens são discursantes mais charmosos.

Os nomes que compõem o elenco são conhecidos, começando pela adorada Julie Walters, com um papel cômico que se encaixa certeiramente com a artista. Já Emily Blunt é uma reencarnação de Mary Poppins, uma mais que competente interpretação para uma personagem, nesse caso, maior que a própria existência do tempo, quase como um símbolo por si só, um monumento a ordens um poucos convencionais, como o respeito, as normas de convivência e outros pensamentos mais conservadores – que transformam a caricatura de uma personalidade quase sagrada em um olhar sobre o humano -, e também um gostoso abraço à possibilidade da impossibilidade, entre outras óticas de que as coisas irão dar certo, mesmo com o descontrole do controle. Lin-Manuel Miranda, acompanhante da protagonista, reencena o sotaque carregado – e errado – do intérprete de Bert, personagem do clássico, enquanto é transportado da sua participação passiva a um movimento de maior relevância na narrativa. O Retorno de Mary Poppins, em contrapartida a esses acertos, desiste do que desenvolver com os antagonistas, com os medos por bancos e afins, passando a acreditar, contrariando a si mesmo, nos próprios bancos.

O roteiro de David Magee, autor premiado por alguns trabalhos no cinema, mas nenhuma conquista verdadeiramente “supercalifragilisticoespialidosa”, portanto, não equipara-se ao musical original em quase nada, senão na retomada de alguns trechos similares, como a cena dos acendedores de lampiões. Uma simplicidade é recorrida, mas parece ter sido originada de uma conclusão mais apressada do que corretamente construída com margem na espirituosidade, necessária para a execução de qualquer orgânica costura entre uma sequência e outra, as quais, nesse caso de uma pressa inimiga à perfeição, um péssimo acabamento, não se completam quando em uníssono. Meryl Streep, a exemplo, possui um cameo estendido, que a incorpora em um grande número musical gratuito, aumentando a duração do longa-metragem. Já a esperadíssima participação do Sr. Townes Jr. (Navckid Keyd) promove um misto de sentimentos ao espectador, sendo um dispositivo narrativo abruptamente exposto, assim como uma homenagem mais que merecida, impressionando o mundo em uma cena, entretanto, que não envolve nenhuma mágica aparente – a mistura do impossível com o possível é o cerne das propostas desse musical.

Os pinguins são encantadores, a direção de arte é responsável por algumas ambientações que engrandecem exponencialmente certos números musicais, a mescla da animação com o live-action é acompanhada por cores e desenhos ainda tão envolventes e charmosos quanto o uso dos efeitos especiais no clássico, mas o mais surpreendente da obra, no entanto, é acima de qualquer outra coisa, encantar os espectadores com a cena de um mero senhor sapateando – em um outro caso, anterior, o tempo é retornado da maneira mais espirituosa, possível e mágica inimaginável. O Retorno de Mary Poppins reúne, em muitas das suas opções criativas, uma visão sonhadora com uma visão menos embriagada, mostrando o quanto o longa-metragem tem o poder de discursar sobre uma saída um pouco extraordinária demais para os nossos problemas, mas ainda uma saída, porque é pautada na esperança, não em algo menor. Ora, a conclusão de “Trip A Little Light Fantastic” é nada mais nada menos que o derradeiro momento da revolução operária, com chamas sendo erguidas, em que se emancipar dos problemas é acreditar e continuar. As ingênuas mentiras são substituídas pela esperança, porque, enfim, Mary Poppins retornara e continuará retornando.

A nova jornada parte de uma surpreendente premissa de que términos harmoniosos, como o do adorado clássico da década de sessenta, sempre serão desfeitos, apenas para serem restaurados novamente e, sem a ingenuidade de que exista eternidade a algum sentimento ou estado de espírito, posteriormente desconstruídos mais uma vez. Um caminho cíclico para os acontecimentos mundanos, podendo ser concluídos e recomeçados com o retorno de uma babá voadora, ou em termos mais terrenos, com uma permissividade ao conserto de quaisquer problemáticas, quer que sejam problemas financeiros, certificados rasgados ou porcelanas quebradas – para onde que as coisas perdidas vão, senão para um reencontro à esperança, por ora esquecida. Uma pipa voando aos céus irá se prender a uma mulher praticamente perfeita em tudo, novamente e novamente, enquanto alguma casa precisar dos conselhos impossíveis e mais coloridos, empolgantes e extasiantes a mentes já cansadas com a poluição de um cotidiano sem a mesma condição milagrosa possuída e evidenciada pelo cinema onde animais conseguem falar, reacendendo alguma chama no coração maravilhado de quem, portanto, passa a acreditar até no inacreditável.

O Retorno de Mary Poppins (Mary Poppins Returns) – EUA, 2018
Direção: Rob Marshall
Roteiro: David Magee
Elenco: Emily Blunt, Lin-Manuel Miranda, Ben Wishaw, Emily Mortimer, Julie Walters, Pixie Davis, Colin Firth, Meryl Streep, Angela Lansbury, Dick Van Dyke, David Warner, Jeremy Swift, Jim Norton, Bernardo Santos, Kobna Holdbrook-Smith, Bern Collaco
Duração: 131 min.

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