Era um ritual quase religioso. Durante muitos anos, em tempos imemoriais, minha mãe levava a mim e meu irmão para visitar nossos avós maternos todo o domingo e duas coisas invariavelmente aconteciam: refeições incomparavelmente deliciosas e finais de tarde embalados por Sílvio Santos e seu interminável, breguíssimo, mas hilário programa, especialmente o aguardado Show de Calouros. Certamente foi ali que comecei meu processo de perda de massa cinzenta, mas o icônico apresentador do “quem quer dinheiro, aí?” marcou época para mim e, claro, para muitos milhões de outros brasileiros a ponto de ser até espantoso que sua vida nunca tenha sido explorada no audiovisual.
O Rei da TV, série brasileira do Star+ vem, então, para corrigir essa falha ao contar uma interessantíssima e irresistível versão romanceada da vida de um dos nomes mais importantes da televisão brasileira, o camelô transformado em apresentador, depois empresário e, finalmente, dono de uma emissora de televisão Senor Abravanel. Em oito episódios, acompanhamos sua história em dois tempos, um deles em 1988, que podemos chamar de “presente da série”, com Sílvio Santos vivido por um bem maquiado José Rubens Chachá tendo um problema em suas cordas vocais e tendo que parar de apresentar seu programa dominical, sendo substituído por seu pupilo Gugu Liberato (Paulo Nigro), e o outro a partir de 1945, com o personagem primeiro vivido como adolescente por Guilherme Reis e, logo em seguida, como adulto por Mariano Mattos Martins em uma trajetória que vai até 1976 nesta primeira temporada.
A escolha da produção em transitar entre 1988 e as décadas de 40 a 70 cria uma ótima dinâmica para a narrativa como um todo, jamais permitindo que a série esmoreça e abrindo espaço para que o espectador veja dois Sílvio Santos, o inteligente jovem em formação e o poderoso, mas também inseguro magnata já estabelecido. E, mais do que apenas evitar a abordagem meramente cronológica, a obra criada por Marcus Baldini, André Barcinski e Ricardo Grynszpan cria duas histórias que, ao mesmo tempo que conversam entre si, são tonalmente diferentes, com o passado ganhando uma pegada mais realista, em tons pasteis, com Mariano Mattos Martins lentamente construindo o mito na medida em que seu personagem galga os degraus do estrelato e da riqueza; e o “presente” sendo mais onírico e espalhafatoso, com muitas cores primárias, o que emula o “Sílvio Santos ícone da cultura televisiva brasileira”, não exatamente o real, algo que pode ser visto nos maneirismos constantemente exagerados, mas não desgovernados, de José Rubens Chachá, além dos momentos mais lisérgicos que o assombram.
Alguns espectadores provavelmente reclamarão que a convergência temporal torna a conciliação da figura do ator mais jovem com o ator mais velho impossível considerando que a temporada acaba com um espaço de apenas 12 anos entre as duas épocas que retrata, e que Martins não é assim tão parecido fisicamente com Sílvio Santos, mas a grande verdade é que, pelo menos para mim, isso pouco importa. Os dois atores estão excelentes em seus respectivos e diferentes papeis. Aliás, minto, os três atores, pois, mesmo com apenas alguns acanhados minutos no episódio inicial, Guilherme Reis é absolutamente cativante como o Sílvio adolescente já mostrando a sagacidade do futuro magnata.
Gravitando ao redor de Sílvio Santos em seus “dois tempos”, vemos sua primeira esposa Cidinha (Roberta Gualda) tendo que lidar com a forma como o protagonista a esconde de sua vida pública em momentos de fazer o coração doer e, no presente, sua segunda esposa Íris (Leona Cavalli) fazendo de tudo para ocupar o vácuo deixado por seu marido enfermo. Além disso, há o inteligente e essencial braço direito Stanislaw (Emilio de Mello em 1988 e Leandro Ramos no passado) que, começando como fiscal do imposto de renda literalmente comprado – no bom sentido – por Sílvio Santos, torna possível sua subida meteórica e a sagaz diretora criativa Cleusa (Cassia Damasceno no “presente” e Larissa Nunes no passado) que mantém de pé a grade de programação do Programa Sílvio Santos.
No lado vilanesco, temos, claro, a Globo, mais exatamente o maquiavélico e vingativo Rossi (Celso Frateschi quando mais velho e João Campos quando mais novo), arquiinimigo do Sílvio Santos e a única figura pública do alto escalão na série que teve seu nome real trocado, pois, claro, ele faz as vezes de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, mais conhecido como Boni. Os conflitos entre Rossi e Sílvio são caricaturais talvez até demais mesmo para uma série que é repleta de boas caricaturas, mas tudo acaba funcionando a contento para jogar um pouco de luz nos meandros políticos do Brasil dos anos 70, o que permite à obra abordar a ditadura militar e suas mazelas, ainda que de forma consideravelmente leve e bem-humorada, mas sem perder o tom crítico.
O trabalho da direção de arte na recriação de época, com figurinos, veículos, mobiliário e cenários é um primor que vai no detalhe, seja o Maverick esportivo de Sílvio Santos aqui, ou a mesa de centro de Jorge Zalszupin, tudo permitindo a imersão completa nas variadas décadas retratadas. E o mesmo vale para a evolução do Programa Sílvio Santos, tecnicamente começando com ele jovem como camelô, depois passando por uma tenda de circo itinerante, até chegar à televisão, com personagens reais, mas folclóricos do rádio e TV do país aparecendo aqui e ali via um elenco de suporte afiadíssimo e claramente muito à vontade nessas pequenas homenagens.
Mas é importante deixar claro que, quando falo em homenagens, refiro-me especificamente a personagens como Manuel de Nóbrega (Cacá Carvalho), Chacrinha (André Abujamra), Pedro de Lara (Ary França) e outros, pois O Rei da TV não é uma série chapa branca. Sim, ela, no final das contas, tem um olhar mais… meigo para Sílvio Santos, mas as críticas fortes a seu comportamento com a primeira esposa, com a forma como ele faz negócios, como ele se apropria do Baú da Felicidade, além de toda a malandragem da figura histórica estão plenamente presentes, o mesmo acontecendo com Gugu Liberato, Boni… digo, Rossi (esse sim um “vilãozão”), Roberto Marinho (Pascoal da Conceição) e outros. O que acontece é que a abordagem geral da série é alegre como o programa de variedades do Sílvio Santos, o que minimiza o impacto de muita coisa, mas, por outro lado, comunica melhor a história de um homem inesquecível que passeia por um Brasil problemático de várias décadas.
O Rei da TV é diversão e entretenimento sim, mas com conteúdo, sem que a obra se deixe levar pelo caminho mais fácil sempre. Há elogios, mas há críticas. Há homenagens, mas há responsabilizações. Há beleza brega inocente, mas há feiura indesculpável. Com um elenco de qualidade, uma produção cuidadosa e um roteiro que sabe romancear os fatos, a série é um verdadeiro show sobre o maior showman de nosso país que verdadeiramente trouxe muita alegria dominical a muitos lares brasileiros, mesmo que os bastidores de tudo não fossem exatamente tão coloridos assim. Que venha a segunda temporada!
O Rei da TV (Brasil, 19 de outubro de 2022)
Criação: Marcus Baldini, André Barcinski, Ricardo Grynszpan
Direção: Marcus Baldini, Carol Minêm
Roteiro: André Barcinski, Ricardo Grynszpan, Mikael de Albuquerque, Henrique Melhado, Marcela Macedo
Elenco: José Rubens Chachá, Mariano Mattos Martins, Guilherme Reis, Leona Cavalli, Roberta Gualda, Cassia Damasceno, Larissa Nunes, Emilio de Mello, Leandro Ramos, Celso Frateschi, João Campos, Paulo Nigro, Cacá Carvalho, Bárbara Maia, Gui Santana, Claudio Márcio, Pascoal da Conceição, André Abujamra, Ary França, Elisa Romero, Nizo Neto, Daniela Paschoal, Fernando Vigui, Carlos Meceni
Duração: 377 min. (oito episódios)