A saúde no Brasil é um de nossos maiores problemas públicos. Há excesso de pacientes e falta de leitos. Médicos com remuneração abaixo do esperado e muita corrução entre os altos postos estatais e a distribuição da verba para atendimento adequado. É possível perceber, desta forma, que temos bastante material para experiências ficcionais de horror essencialmente brasileiras. Um caso bem-sucedido esteticamente, mas com problemas de condução é O Rastro, lançado em 2017, fusão de terror psicológico com denúncias sociais. Considerado um grande passo para a evolução do terror no cinema nacional, a produção é uma mescla destas duas abordagens, isto é, o aprofundamento psicológico e a crítica social entre o “real” e o “sobrenatural”, imagens que acabam se transformando em alegorias para os nossos problemas contextuais.
Sob a direção de J. C. Feyer, cineasta guiado pelo roteiro escrito pela dupla formada por André Pereira e Beatriz Manella, O Rastro foi produzido num período pertinente para os medos e inseguranças que nos cercam, o filme apresenta a história de João Rocha (Rafael Cardoso), um homem que aparentemente está no momento que todo jovem adulto de origem tradicional deseja, isto é, família estabelecida, emprego garantido e um filho a chegar, fruto do casamento com Leila (Leandra Leal). Ele trabalha no Hospital da Beneficência Portuguesa, local abandonado pelo estado, da sua estrutura calamitosa à falta de medicamentos para atendimentos mais simplórios. Um caos representado de maneira tão verdadeira quanto à nossa realidade.
Localizado na região do bairro da Glória, no Rio de Janeiro, o hospital é alvo dos problemas comuns ao nosso cenário político, tendo a corrupção como um dos grandes pontos de destruição da missão deste centro que deveria salvar vidas, não dispensá-las para outros hospitais, tarefa que fica à cargo de João, responsável por transferir os pacientes para atendimentos em unidades próximas, pois o hospital vai fechar as suas portas. Isso já se estabelece como uma das crises profissionais do personagem, algo que é apenas o começo da sua caminhada rumo ao horror que se tornará a sua vida. Para quem está com o físico e o psicológico em ordem, os solavancos dos próximos acontecimentos mudam o seu cotidiano coordenado com equilíbrio.
Certo dia, uma garota, Júlia (Natália Maciel Guedes), pede a sua ajuda num breve parecer médico. O aterrorizante é que a jovem some logo depois e a investigação de João o deixa basicamente à beira da loucura, bem no estilo O Iluminado, de Stanley Kubrick, referência para os realizadores, tanto no tom dramático quanto nos traços estéticos de sua construção visual. Acertou, no entanto, nos detalhes técnicos, pois na seara dramática o filme ainda reforça alguns problemas do cinema brasileiro em construir estruturas mais coesas. Subtramas são delineadas antes mesmo da narrativa encerrar outros ciclos, num festival de imprecisões que se torna perdoável quando pensamos na produção como uma experimentação que deu certo. Muito certo, por sinal.
O sumiço da garota deixa todo mundo angustiado. Não apenas João, mas a Dra. Olívia (Cláudia Abreu), o Dr. Heitor (Jonas Bloch), as enfermeiras, zeladores e demais personagens que gravitam em torno daquele espaço. Alguns assumem que não viram a menina, o que deixa o médico ainda mais afundado diante de tal desaparecimento. Estaria louco ou algo de muito errado aconteceu ali? E as breves abordagens sobre tráfico de órgãos? Nós, espectadores, estamos diante de uma narrativa profundamente realista ou contemplamos imagens alegóricas de um estado emocional? Devo dizer que O Rastro passeia por ambos os caminhos. Em sua caminhada, se perde um pouco, mas ainda assim, o resultado é positivo, haja vista a sua ambiciosa estrutura visual.
Diante do exposto, não há como passar pelo filme sem prestar atenção e se dedicar ao processo analítico das imagens captadas pela direção de fotografia de Gustavo Hadba, o responsável por registrar os espaços construídos cuidadosamente pela direção de arte de Daniel Flaskman, setor meticuloso ao construir a atmosfera ideal para a inserção dos efeitos visuais da equipe de Omar Colocci. A paleta de cores vai do azul ao preto, sempre com tons sombrios, edição que preza por imagens incomuns em nossa cinematografia mais pragmática. De volta aos elementos fotográficos, a proposta do realizador era investir na câmera na mão, mas ao passo que a sua pesquisa de campo avançava, sentiu a necessidade de planos mais abertos e longos, uma escolha coerente para a sua história.
Com ameaças expostas por meio de espelhos e sombras, o filme só peca pelo excesso de efeitos sonoros, os famosos jumpscares que se tornaram a subserviência do terror contemporâneo, muitas vezes funcional, mas em sua maioria, utilizado para disfarçar problemas de origem dramática. Eduardo Vismond, responsável pelo design de som, abusa do uso destes efeitos, recurso que torna O Rastro uma narrativa que se aproxima do trivial no gênero, mesmo que a intenção dos realizadores tenha outro propósito, isto é, regionalizar a sua abordagem para o terror. A condução musical de Bernardo Uzeda também é eficiente, mas não é marcante como outros aspectos da composição da narrativa, talvez sublimada pelos efeitos na seara sonora. Em suma, uma experiência revigorante para o cinema nacional, sistema de produção que precisa se ater aos seus pequenos problemas de ordem dramática para entregar filmes ainda mais relevantes.
O Rastro — (Brasil, 2017)
Direção: J. C. Feyer
Roteiro: André Pereira, Beatriz Manella
Elenco: Rafael Cardoso, Leandra Leal, Cláudia Abreu, Alice Wegmann, Érico Brás, Gustavo Novaes, Jonas Bloch, Felipe Camargo
Duração: 90 min.