O Questão é um repórter investigativo. E também um vigilante cheio de conflitos éticos e visão de mundo que mescla Objetivismo, Causalidade e Filosofia Zen. Considerado um dos personagens mais complexos criados por Steve Ditko — reformulado por Alan Moore para criar o Rorschach, em Watchmen — , Charles Victor Szasz ou Vic Sage surgiu na revista do Besouro Azul em 1967, quando o título ainda pertencia à Charlton Comics. Esta primeira versão traz um herói com senso de dever próximo à neurose. Ele odeia a mentira, mas percebe que seus contatos no meio jornalístico forçam-no mentir e fazem coisas que ele sabe que é mentira mas não pode, por algum motivo, interferir. Essa oposição entre teoria e práxis dá ao personagem um alto nível de sentimento de compensação, expondo no telejornal onde trabalha o máximo de “podres sociais” que consegue e, fora da vida social, lutando nas ruas contra os bandidos de Hub City.
Em 1983, a DC Comics adquiriu os direitos de publicação para a maioria dos heróis da Charlton (então a caminho da falência), tendo Dick Giordano como um dos negociadores principais desse processo. O Questão estava entre esses personagens. Apenas 4 anos depois, Dennis O’Neil assumiu as rédeas de Vic Sage na editora, fazendo uma revisão em sua origem, mas mantendo a essência filosófica e os conflitos internos que marcaram o personagem nos anos 60. Seu amigo e mentor Aristotle “Tot” Rodor e o interesse romântico em Myra Fermin permaneceram, mas daí para frente, dois grandes professores de Vic se destacariam: Richard Dragon e Lady Shiva. Na linha cronológica da DC, antes de morrer, vítima de câncer de pulmão (na minissérie 52, publicada entre 2006 e 2007), O Questão treinou Renee Montoya para assumir o seu manto.
Zen e a Arte da Violência, o primeiro arco da nova fase do Questão (edições #1 a 6 da revista The Question, publicadas em 1987), tem uma linha corrente de eventos menos forte do que estamos acostumados nos quadrinhos. Basicamente estamos falando da passagem de Vic Sage de um estágio “cru” de batalhas vestindo a máscara do Questão, para alguém mais sério, que passou por um longo treino — assistido por Lady Shiva — e começou a ver o mundo de forma ainda mais intrigante. A história não muda muita coisa do princípio do herói, mas existe uma problematização maior quanto às questões sociais e mais liberdade do autor em apresentar elementos de violência, que são muitos e possuem detalhes que deixam o leitor enjoado e enraivecido ao longo das páginas.
O dilema de Vic Sage neste arco de estreia é o de como e por quê contar a verdade. Sendo repórter, ele percebe que a cidade está corrompida e que a simples denúncia das pessoas que estão tornando o lugar ruim (ou ainda pior do que que já estava) é desencorajada, inutilizada ou engavetada; pois essas pessoas são, sem surpresa nenhuma, figurões sociais muitíssimo bem aceitos na sociedade, normalmente pregadores de uma moral inabalável, marcados por valores tradicionais cristãos (como no caso do reverendo sádico) e, até o momento, livres de qualquer suspeita. Durante a leitura eu não pude deixar de rir um pouco pela comparação, em menor escala, com os escândalos que corrupção no Brasil e figuras públicas que se mostram isentas mas que são pelo menos uma das causas desses problemas.
O’Neil tem uma maneira bastante simples de contar uma história. Ao mesmo tempo que percepções da realidade e claras e rápidas mudanças do personagem são percebidas, o leitor não perde o foco da luta, do elemento criminoso em pauta. Em nenhum momento o roteiro abandona os problemas de Hub City — que aqui têm a ver com o prefeito da cidade e com uma velha conhecida de Vic –, usando deles para mostrar a preocupação do protagonista com a vida dos outros, muitas vezes sendo imprudente e cometendo atos impensados e impulsivos, que acabam causando a sua “morte” e posterior “renascimento”, pontos da vida do herói que o empurrará para a meditação, o belo e quase lírico contraste colocado nesta história entre a filosofia Zen e a violência.
Denys Cowan e Rick Magyar assinam a arte das revistas e há uma valorização imensa das cenas de luta. Aliás, o arco inteiro se divide em momentos de conceitos pesados sendo trabalhados com muito texto contra momentos em que apenas onomatopeias acompanham os desenhos. A fluidez das cenas é simples, sem muito preciosismo nos ângulos de enfrentamento, mas isto é algo que funciona muito bem para este tipo de história. Com a predominância da cor azul e forte presença do cinza e do vermelho na cidade, notamos a atmosfera de opressão e sangue que o texto delineia, fazendo-nos visitar os vários cantos de Hub City e ver onde estão tramando coisas contra inocentes ou roubando coisas de uma cidade que não tem nem para si.
As técnicas de investigação de Vic ainda são rudimentares aqui e ele parece mais preocupado com o enfrentamento físico do que qualquer outra coisa. Tendo recebido um puxão de orelha do Batman, em um ótimo cameo, e começando a meditar, silenciar o exterior e se preocupar mais com outras coisas, o personagem nos parece alguém em aprendizado rápido e contante. Às vezes irônico, marcado por uma linha fina de humor negro e cercado por criminalidade típica de cidades grandes onde o subúrbio fala mais alto e define a maior parte das interações do município (clandestinamente ou sob falsa legalidade), O Questão começa entender melhor a sua própria identidade heroica, tornando-se uma pessoa melhor, enquanto o mundo à sua volta parece resistir a qualquer tipo de mudança. O grande dilema interno e externo dos heróis urbanos.
O Questão: Zen e a Arte da Violência (The Question, Vol. 1: Zen and Violence) — EUA, fevereiro a julho de 1987
Roteiro: Dennis O’Neil
Arte: Denys Cowan
Arte-final: Rick Magyar
Cores: Tatjana Wood
Letras: Gaspar Saladino, Albert DeGuzman
Capas: Bill Sienkiewicz, Denys Cowan
Editoria: Mike Gold