SPOILERS!
O que Kurt Busiek faz aqui nesta história do Demolidor, que já nas primeiras páginas morre pelas mãos do Justiceiro, é algo simplesmente admirável e deveria ser conhecido por mais fãs do Homem Sem Medo. Aliás, a série O que aconteceria se… deveria ser mais conhecida por todos. As propostas bem criativas para inúmeras realidades alternativas e a liberdade que os artistas tiveram para tratar os personagens nos oferece, ao menos na maioria das vezes, tramas que não veremos por inteiro no cânone das séries regulares, mas que queríamos muito ver, o que por si só já vale a leitura, mesmo que o resultado final não seja sempre admirável, como o da edição O que aconteceria se… o mundo soubesse que o Demolidor é cego?
Com um contexto universal, atemporal e narrativamente ágil, Busiek não se deixou levar por luto de heróis, por explicações condescendentes para as muitas mortes que acontecem ao longo das páginas e por panos quentes que normalmente servem para aplacar os dissabores da realidade… Não existem momentos felizes em se… o Justiceiro tivesse matado o Demolidor? e todos os personagens do Universo Marvel que residem próximos a Nova York são afetados pela morte do Diabo.
Neste cenário com ares de guerra civil, as consequências em cascata são assustadoras e nos deixam pasmos com o quanto se parecem com eventos políticos frequentes no Brasil e em republiquetas de bananas por toda a América Latina. Até um grupo de heróis (Capitão América, Gavião Arqueiro, Manto, Adaga e Tocha Humana) aparecem na história, oferecem ajuda e tentam fazer algo, mas seus esforços são impedidos por ordem direta do presidente ou são insuficientes diante da torrente de coisas que estão em jogo, em especial, porque tudo o que se vê é uma mera distração criada para que, nos bastidores, o Rei do Crime consiga assumir o poder político da cidade, ao menos de forma indireta.
A presença do Vigia é orgânica e colocada com dois momentos com princípios dramáticos diferentes, o primeiro como domínio e observação — introduzindo a saga, como sabemos que faz em todas as edições desta série — e o segundo como ironia, demonstrando a não-intervenção e o conhecimento de tudo o que acontece na Terra. Há aí um jogo metalinguístico bastante inteligente do roteiro, que faz uso da própria mitologia da série e da história em questão para cumprir os requisitos básicos de início e final.
Luke McDonnell faz sua parte nos dando uma aparência crua, simples e incômoda da realidade através da arte de traços finalizados com ruídos e que refletem a fragilidade política da cidade, o câncer das organizações criminosas, a baixeza moral de alguns cidadãos e os conflitos éticos que Kurt Busiek explora no roteiro, principalmente do Justiceiro, que está em algo parecido com uma “maré de azar”, tendo matado o Demolidor (sem querer) e depois o Homem-Aranha (para se salvar) e desencadeado a morte de tia May, Ben Urich, Foggy, Rei do Crime e dele próprio. E o mais curioso em todo esse banho de sangue é que enquanto um personagem sai de cena, outros, juntamente com grupos associados, procuram ocupar aquele lugar ou ganhar em cima. É a aplicação do ditado “a vida continua” da maneira mais ingrata e selvagem possível.
Fortemente amparado pelo funcionamento político de grandes cidades, pela forma tendenciosa (e criminosa) como a mídia expõe determinados fatos e pela abordagem majoritariamente superficial e propositalmente confusa que o jornalismo se comunica com o grande público — são poucas, as exceções –, Busiek nos mostra que a saída do Demolidor do cenário urbano da Cozinha do Inferno não tem uma boa sequência de eventos, mas sim, uma esteira de tragédias que deixaram os leitores de boca aberta a cada dupla de páginas lidas.
O que aconteceria se… o Justiceiro tivesse matado o Demolidor? (EUA, 1991)
Título original: What If… The Punisher Killed Daredevil? (What If? Vol.2 #26)
Roteiro: Kurt Busiek
Arte: Luke McDonnell
Cores: Tom Vincent
Letras: Janice Chiang
Capa: Luke McDonnell
30 páginas