Sendo cru e direto, é bastante complicado apontar ou encontrar de imediato um nome tão controverso e perverso no cinema como o de Paul Verhoeven. Seus filmes não são apenas meros exercícios de desconstrução de gênero e estética (e à partir daí, criar seu próprio molde sobre aquela identidade), mas também autênticas experiências de desafio sensorial e imagético, onde as próprias imagens concebidas pelo diretor diziam muito mais que o conjunto em si. Foi assim desde o início com Louca Paixão (o filme que Love quis ser e não foi, de acordo com os mais imperdoáveis) e continuou quando Verhoeven se mudou para Hollwood e deu início a sua quebra de paradigmas, conceitos e fórmulas: Robocop, O Vingador do Futuro, Instinto Selvagem, Showgirls, Tropas Estelares… é, há quem possa dizer que a melhor fase de Verhoeven se deu durante sua estadia nos EUA.
Mas antes disso, Verhoeven já ensaiava – ou melhor, já nos dizia com todas as letras – o que seria sua forma de narrar uma história. Na verdade, seria mais sua forma de como narrar uma história tornando seu plot o que há de menos essencial em seus filmes. Pois O Quarto Homem não conta uma história e nem se preocupa com tal. Sua desfragmentação proposital de sentido narrativo e compreensão de imagens são meras desculpas para que o diretor diga bem mais através daquilo que evita ser dito e que deve ser sentido. Basicamente, ele é sobre Gerard Reve (Jeroen Krabée), um escritor alcoólatra, católico e bissexual que se envolve com Christine (Renée Soutendjik) mas que logo começa a nutrir desejos pelo namorado da moça, Herman (Thom Hoffman). Ao descobrir que Christine já fora casa três vezes no passado e que todos os seus maridos morreram sob circunstâncias estranhas, Gerard entra numa espiral de loucura e incerteza sobre até onde sua relação com a mulher irá levá-lo.
Há quem aponte (e com razão) O Quarto Homem como uma espécie de prelúdio para o já mencionado thriller subversivo de Verhoeven, Instinto Selvagem, onde há tanto um constante sentimento de perversão sexual e iminência da morte no ar (aliando a isso um mistério que insiste em jamais se dissolver da tela) quanto pelo papel feminino como catalisador da descida do homem ao seu inferno pessoal, algo no qual Verhoeven claramente se apoia nos elementos hitchcockianos de Um Corpo Que Cai e que, sob suas lentes, adquire novos ares de morbidez e esquizofrenia.
E assim, é do interesse do diretor muito mais montar seu próprio jogo de percepções, onde a iminência da tragédia sanguinolenta (quem será a suposta quarta vítima de Christine?) é anunciada constantemente por pássaros que caem mortos do nada, por cães que avançam em meio a uma ventania de flores vermelhas, por uma viúva negra (espécie de aranha que devora o macho após a cópula) que devora um inseto num close significativo, pelas referências oníricas nem tão óbvias assim a Jorodowski, Buñuel, Mario Bava e Lucio Fulci… Tudo em O Quarto Homem é posto em conjunto como funcionalidade para uma autêntica atmosfera de horror da qual não se pode fugir.
Essa rica e impensável composição de estética, simbolismos e elementos, já montada por Verhoeven através de todas estas referências, também vieram a servir de influência em cineastas como M. Night Shyamalan, Martin Scorsese e Brian De Palma em suas formas de narrar uma história, mas a última preocupação de Verhoeven está justamente no tecer de uma narrativa de bandeja. A forma concreta é posta de lado em prol de uma experiência de relações com a força da imagem, com o desafio a compreensão, quase um “falso filme” que fala tão alto quanto qualquer outro dos maiores projetos do diretor. E entre os maiores é que está O Quarto Homem.
O Quarto Homem (De Vierde Man) – Países Baixos, 1983
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Gerard Soeteman (baseado no livro de Gerard Reve)
Elenco: Jeroen Krabbé, Renée Soutendijk, Thom Hoffman, Dolf de Vries, Geert de Jong, Hans Veerman
Duração: 102 min.