Pedro Almodóvar sabe usar cores como ninguém. Cada um de seus filmes – em menor ou maior grau – é capaz de hipnotizar o espectador só pela maneira como ele dispõe do verde, do vermelho, do amarelo, do azul e assim por diante em tonalidades pouco usuais em fotografia cinematográfica. E, em O Quarto ao Lado, filme que lida essencialmente com a mortalidade e que tem uma das protagonistas morrendo de câncer, é impressionante como ele não só não abre mão de sua assinatura visual, como a utiliza de maneira absolutamente elegante, amplificando cada quadro e injetando vida a cada sequência de seu aclamado primeiro filme em língua inglesa que lhe valeu o Leão de Ouro de Melhor Filme no 81º Festival de Veneza, também o primeiro em sua impressionante carreira.
É natural que um cineasta já com 75 anos e sensível como Almodóvar use sua arte para contemplar a morte e, aqui, ele mergulha de cabeça na temática ao reunir duas amigas que não se viam há muitos anos em razão de uma delas estar próxima da morte. Julianne Moore vive Ingrid, uma escritora de sucesso que, quando descobre que Martha (Tilda Swinton), uma ex-correspondente de guerra, está passando por tratamento contra o câncer, não hesita em visitá-la no hospital, algo que, no decorrer da narrativa, torna-se uma constante na vida das duas que passam a trocar lembranças de vários períodos de suas respectivas vidas. No entanto, com o tratamento não dando o resultado esperado, Martha decide pela eutanásia (que é ilegal nos EUA) por meio de uma pílula adquirida por meios escusos e pede para que Ingrid a acompanhe em seu último e idílico retiro em uma casa alugada como sua companhia e a pessoa que estará no “quarto ao lado” quando a morte vier.
Entre as reminiscências da juventude, especialmente o misto de tristeza e orgulho que Martha sente em relação à sua filha com quem tem pouquíssimo contato, as duas mulheres maduras tornam-se melhores amigas mais uma vez, com Ingrid sendo obrigada a enfrentar o medo da morte que, coincidentemente, fora o tema de seu último livro. No entanto, o que poderia ser um filme carregado de melancolia, de finalismo, de dor e de tristeza, o roteiro de Almodóvar, baseado no romance O que Você Está Enfrentando da autora americana Sigrid Nunez, que foi publicado em 2020, transforma, ao revés, em uma celebração da vida, ou, talvez mais corretamente afirmando, das imperfeições e experiências positivas e negativas que formam, em cada um de nós, o que esperamos ser uma vida bem vivida. Não se trata de uma obra feita para chorar por Martha, mas sim para admirar sua decisão inamovível e para compreender que, quando chega a hora, talvez seja melhor escolher como ir.
Em uma das mais inspiradas escalações dos últimos tempos, Almodóvar usa o tipo físico de Tilda Swinton – alta, muito magra e pele muito branca – para criar uma personagem vivamente adoecida, se é que posso usar essa contradição em termos. O trabalho da equipe de maquiagem, suave, delicado e que pontualmente acentua as características da atriz que parecem existir para esse papel é exemplar e faz de Swinton uma das mais elegantes moribundas da Sétima Arte, algo que é amplificado por figurinos naturais, lógicos para a personagem que é construída, mas que fazem uso generoso das mencionadas cores “almodovarianas”. E, claro, a atriz está muito bem no papel, combinando à perfeição doses iguais de fleuma e aceitação da condição de sua personagem que só são quebradas pela conexão que sente em relação à Ingrid, algo que talvez ela não esperasse. E, claro, a personagem de Moore funciona como a antítese de Martha, emocional e tensa, mas que, também, com a reaproximação e com as reminiscências trocadas entre elas, encontra algo como uma nova dimensão para sua própria vida.
No entanto, não sei se em razão do uso da língua inglesa ou se pelo delicado tema central da película ou por uma combinação dos dois fatores, achei que os diálogos que Almodóvar escreveu ficaram pouco característicos dele, perdendo em naturalidade e ganhando em sisudez, evitando o ar de improviso que suas obras têm em prol de algo muito mais rigidamente estruturado, por vezes até artificial, com o emprego constante de frases de efeito, de tentativas falhas de se inserir erudição literária e audiovisual, algo que também é característica do cineasta, mas que, aqui, não funcionou tão bem. E isso refletiu nas atuações de Swinton e Moore. Por melhores que elas estejam, a interação delas por diversas vezes mostraram-se como que acorrentadas, sem nenhuma liberdade para as atrizes estabelecerem uma real e vívida conexão na telona, quase como se cada uma das duas estivesse atuando sozinha.
Não ajuda em nada a linha narrativa paralela que conta com John Turturro como ex-namorado da duas – em momentos diferentes – que também se reconecta, mas com Ingrid, tornando-se um confidente dela em relação ao que está se passando com Martha e com toda o propósito do retiro. Damian, seu personagem, parece existir ou para ser redundante, pois tudo o que Ingrid conversa com ele o espectador já sabe, ou para soltar linhas de diálogos completamente perdidas para que Almodóvar possa dizer que seu filme é politicamente engajado ou, finalmente, para criar toda uma narrativa envolvendo polícia e advogada que, muito sinceramente, nada agrega à natureza contemplativa do longa. Fiquei com a distinta impressão que Almodóvar acrescentou o personagem e o dénouement policial em alguma revisão bem posterior do roteiro, mesmo que esses elementos estejam presentes no livro (e eu não sei se estão), quase que como algum tipo de determinação vinda de cima da produtora americana para “americanizar” uma narrativa que simplesmente não precisava disso.
Mas a discussão que O Quarto ao Lado propõe e a forma como a mortalidade é trabalhada, em um misto de leveza e humor com sobriedade e respeito, com direito a estupendas telas coloridas sobre as quais Almodóvar constrói seu filme, fazem da obra uma experiência que inspira no lugar de assustar, que traz genuíno conforto em vez de angústia. O cineasta olha para a frente e vê beleza, vê um lugar ao sol e ele só enxerga isso por entender que é necessário fazer as pazes com o passado – imperfeito como ele necessariamente é – e mostra que é justamente esse passado que nos faz ser quem somos.
*Crítica originalmente publicada em 12 de outubro de 2024, como parte da cobertura do Festival do Rio 2024.
O Quarto ao Lado (The Room Next Door – Espanha/EUA, 2024)
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar (baseado em romance de Sigrid Nunez)
Elenco: Tilda Swinton, Julianne Moore, John Turturro, Alessandro Nivola, Juan Diego Botto, Melina Matthews, Raúl Arévalo, Victoria Luengo, Esther McGregor, Alex Høgh Andersen, Alvise Rigo
Duração: 107 min.