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Crítica | O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu

Ciência e humanidade.

por Kevin Rick
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Escrito por Cixin Liu, um autor chinês com formação em engenharia da computação, O Problema dos Três Corpos é um sci-fi extremamente técnico e com alto grau de embasamento científico, resgatando o estilo da ficção científica hard que vem sendo gradualmente perdido em obras do gênero cada vez mais juvenis e descompromissadas no século XXI. A premissa do livro envolve um universo em que a Terra encontra uma civilização alienígena avançada que tem um grave problema em sua órbita, razão pela qual os extraterrestres decidem invadir o planeta azul depois de serem “convidados” por Ye Wenjie durante o período da Revolução Cultural Chinesa. Anos depois, Wang Miao, um professor de nanotecnologia, é obrigado a trabalhar com Shi Qiang, um detetive astuto e imoral, para investigar misteriosos suicídios de vários cientistas, que eventualmente descobrimos ter relação com a vinda dos alienígenas chamados de Trissolaris.

Sempre fui fascinado pelo conceito do contato em obras sci-fis, seja pela maneira que teorizam uma hipótese ao mesmo aterrorizante e cativante, seja pela forma que obras assim são impactadas pela nossa própria interação com diferentes países, estados e culturas. Nesse sentido, a premissa de O Problema dos Três Corpos é interessante pelo simples fato de ser um romance escrito por um autor chinês e por ter uma perspectiva histórica que foge do que leitores do ocidente estão acostumados com o eixo EUA-Europa de sci-fis literários. Abrindo o livro com uma passagem brutal da Revolução Cultural Chinesa, somos rapidamente imersos em uma ficção científica que gosta de abordar política e filosofia.

Assim, o primeiro aspecto que chama a atenção na obra não é a travessia pelo espaço e sim pelas fronteiras. Eu li a obra pela primeira vez durante a pandemia e desde então vi muitas pessoas classificarem a representação histórica do livro como anticomunista ou comunista se conseguem acreditar, até porque extremistas normalmente se encontram no mesmo ponto de irracionalidade. Da minha leitura, porém, Cixin Liu está bem longe de realizar um trabalho propagandista ou panfletário, e sim algo mais próximo de uma representação autêntica e pessoal – os pais do autor foram obrigados a trabalhar em minas e ele teve que se mudar para fugir da violência da Revolução Cultural Chinesa – do que foi esse período e como impactou suas vítimas. Afinal, todos os acontecimentos da narrativa têm como estopim a escolha de uma pessoa que não acreditava mais na sociedade.

Em vários trechos e dilemas da história, o autor resgata esse tipo de trauma de uma forma engajante e trágica para leitores que não tiveram contato com essa passagem histórica e suas consequências socioculturais e sociopolíticas. Noto até uma tentativa de criar empatia com algumas escolhas tenuemente morais dos personagens da obra no que concerne a grande questão filosófica da história: a humanidade vale ser salva?. Em determinados momentos, Liu é crítico sobre esse questionamento, principalmente quando retrata um grupo extremista que venera os alienígenas, carregando certos temas religiosos e dogmáticos à trama, enquanto em outros momentos consegue ser um tanto cínico (não de uma maneira ruim) com a resposta, como por exemplo quando aborda a destruição da natureza. De maneira geral, porém, há um olhar que tenta ser otimista em relação à humanidade, especialmente das perspectivas de Wang Miao e Shi Qiang.

A estrutura da narrativa pode ser estranha às vezes, pulando entre flashbacks de Ye Wenjie e os acontecimentos atuais, mas a leitura consegue fluir bem nessas transições, até pela forma que Liu encaixa revelações do passado com muito cuidado para não atrapalhar seu estilo de escrita misterioso. Temas sobre fanatismo, alienação, radicalização e a condição humana vem à tona nas discussões dos personagens, mas a estrutura da narrativa enfatiza principalmente uma história sobre conspiração, o que deixa seus enigmas mais cativantes de desvendar. Tenho alguns problemas com a caracterização dos personagens – em sua grande maioria frios e unidimensionais, por mais que seus dilemas não sejam simples – e também com o processo investigativo da organização que luta contra os Trissolaris, com resoluções fracas para algumas descobertas e na forma simplificada, às vezes até boba, que as respostas caminham para a superfície – por exemplo, não gosto da facilidade com que infiltram no “culto” do Trissolaris e quão efetivamente conseguem parar seus planos -, mas é aí que a ciência e a ficção científica entram.

Cixin Liu não tem vergonha de ser cientificamente rigoroso e precisamente técnico. Obviamente que o enredo extrapola a realidade e beira o psicodélico em diversas passagens do livro, mas tudo é uma carta de amor para o hard sci-fi, com longos trechos e blocos de pura exposição técnica de tudo que entendemos e definitivamente não entendemos, passando por astrofísica, nanotecnologia, mecânica quântica, inteligência artificial e afins. Seria fácil cair em armadilhas herméticas em sua escrita descritiva, mas o autor sabe como ser didático sem ser chato, como ser inteligente sem ser presunçoso, especialmente nos núcleos que envolvem o estudo do problema que dá título à obra.

Trazendo um mundo virtual como cenário narrativo, Liu consegue brincar com suas ideias científicas de uma maneira que podem ser facilmente traduzidas para o leitor a partir de um espaço praticamente metafísico, que ganha contornos da diversão de um jogo de videogame com suas passagens de níveis e fases. É irônico como a própria premissa dos Trissolaris usarem figuras históricas e períodos de grande importância humana para facilitar a comunicação com os humanos, é justamente o efeito que leitores mais leigos do universo científico sentem com a “simplificação” de questões complexas – sem subestimar ou pegar na mão do leitor, como a adaptação faz. Partindo de conceitos fascinantes, uma boa linguagem descritiva e cenários históricos, é fácil de ser envolvido e se sentir em uma espécie de aventura de ficção científica com o problema dos três corpos.

Minha grande crítica à O Problema dos Três Corpos é a impressão de que o livro inteiro é um grande prólogo para sua sequência, em que a guerra efetivamente se inicia. Grande porção da obra é sobre contexto, sobre explicações e sobre criar o terreno para as consequências do contato. Pode ser uma sensação frustrante e um dissabor na reta final da obra – um tanto anticlimática – de como tudo soa como uma preparação, mas a questão é que, mesmo assim, o prólogo é fascinante demais.  Cixin Liu, em linhas gerais, pega um dos mais famosos conceitos da ficção científica, bem como um dos seus melhores subgêneros, e injeta uma discussão existencial sobre a natureza humana com contornos políticos, filosóficos, religiosos e históricos. O mais bacana é como tudo isso é envelopado por uma narrativa de conspiração que abraça por completo a ciência da ficção científica. 

O Problema dos Três Corpos (The Three-Body Problem) – China, 2008
Autor: Cixin Liu
Editora original: Chongqing Press
Editora no Brasil (lida para esta crítica): Suma de Letras
Tradução: Leonardo Alves
Páginas: 318

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