- Há spoilers.
Baseado no livro homônimo de Cixin Liu (que teremos a crítica ainda esse mês), que por sua vez é a primeira entrada de uma trilogia literária extremamente célebre no gênero da ficção científica, O Problema dos 3 Corpos é uma produção de hard sci-fi naquele estilo embaralhador de mentes que quase todo mundo gosta, mesmo que ande perigosamente com a possibilidade de tudo acabar sendo uma confusão. Passando pela Revolução Cultural Chinesa e chegando até os dias atuais, a premissa da série envolve uma ligação peculiar entre o comunismo chinês e um dos conceitos mais famosos do gênero sci-fi: o contato com seres extraterrestres. Considerando como a narrativa é envolvida por mistérios e reviravoltas, é difícil se abster de spoilers, então se não viu a série, aconselho a ler a crítica depois para não estragar as surpresas.
Começando com uma sequência de mortes grotescas e perturbadoras na comunidade científica, que acaba reunindo um grupo de amigos brilhantes que inclui Jin Cheng (Jess Hong), Saul Durand (Jovan Adepo), Auggie Salazar (Eiza Gonzalez), Jack Rooney (John Bradley) e Will Downing (Alex Sharp), a série gradualmente envolve o público em uma trama cheia de desorientações e esquisitices que, em sua grande parte, são explicadas com muitos jargões científicos e conversações didáticas que tentam traduzir teorias físicas complexas para o público. Obviamente que o universo expande e estica o máximo possível do que seria considerado “realismo” para a comunidade científica, mas existe um cuidado para fazer com que tudo soe o mais crível possível.
O bacana é que a série nunca fica chata, pedante ou expositiva além da conta. Os criadores David Benioff, D. B. Weiss (sim, a dupla D&D de Game of Thrones) e Alexander Woo têm uma abordagem extremamente clara: tornar tudo o mais acessível para o grande público ter um ponto de entrada a esse material intricado e por vezes esotérico. Eu classificaria a produção como muito bem organizada e esquematizada, sabendo quando ser enigmática ou quando precisa dar respostas, e principalmente como apresentar soluções práticas que, por mais que sejam verbalizadas, são acompanhadas de narrativas visuais na forma que a obra adora dar vida às suas teorias e experimentalismos. O próprio ritmo da temporada é um exemplo da boa condução dos showrunners e roteiristas, que raramente deixam as revelações serem apressadas ou então lentas além da conta. A ideia é chegar ao último episódio entregando uma percepção geral bem completa de seus conceitos científicos e sci-fis (por mais que nós não entendamos as teorias por trás deles) e deixar tudo preparado para um segundo ano que promete ter mais expansão e confronto.
Claro que a acessibilidade caminha em uma linha tênue com a superficialidade. Tendo lido o livro, é notável que a adaptação desperdiça o lado político e multicultural do material original, principalmente na forma que não se aproveita dos temas de fanatismo, alienação, radicalização e humanidade que existem no trabalho de Cixin Liu. Inclusive, penso que mesmo sem conhecer o livro, é possível notar como a adaptação tenta seguir caminhos narrativos mais convencionais e se afasta de algumas discussões sociopolíticas com potencial, seja na maneira que escanteia personagens como Ye Wenjie (Rosalind Chao) e Mike Evans (Jonathan Pryce), seja na forma que utiliza o passado na China mais para contexto do que provocação. Em muitos momentos, é como olhar para um material sendo limitado para satisfazer uma audiência maior.
Talvez seja a sina da própria ideia por trás dessa produção: trazer os criadores da maior adaptação de fantasia de todos os tempos da televisão para adaptar uma produção ambiciosa do gênero de ficção científica para a poderosa Netflix. Seguir a rota segura e menos ousada faz sentido e, bem, como elogiei anteriormente, entrega bons frutos. A primeira metade da temporada lida especificamente com os porquês e as dúvidas de tudo que está acontecendo, sendo críptica o bastante para ser engajante, e divertida de uma maneira satisfatória quando entra no campo do puro entretenimento. Particularmente, os núcleos em torno de uma realidade virtual são os melhores de toda a temporada, visualmente traduzindo alguns conceitos e noções fascinantes do livro para discutir com intensidade, deslumbro e muito bom humor (adoro as participações de figuras históricas) a razão desse evento.
A partir do momento que os personagens entendem o problema que dá título à série, a segunda parte da temporada foca mais na resolução, ou, mais especificamente, em como reagir a uma invasão alienígena anos-luz de acontecer. Para além das metáforas sobre o aquecimento global e mudanças climáticas, a intenção da trama é criar um palco de confronto intelectual. Esse lado da temporada é um pouco menos eufórico, mas igualmente interessante em algumas ideias sobre como combater esse inimigo e as razões dos extraterrestres estarem decidindo a extinção e não a coexistência. Mais uma vez, a produção se encaminha mais para o lado macro do que o micro, por mais que tente desenvolver algumas dinâmicas simpáticas em torno do jovem grupo de cientistas que protagonizam a história, no que é um resultado agradável em uma obra direcionada a ser estimulante e não dramaticamente profunda.
Confesso que quando olho para o impacto de uma produção como Dark, não consigo racionalizar tanto a ideia de simplificar um material sci-fi para ter mais popularidade, por mais que faça sentido do ponto de vista de um produtor. Mas vai saber, talvez essa acessibilidade serviu para trazer atenção à série, que tem tudo para produzir um novo ano mais ousado. É inegável, porém, que O Problema dos 3 Corpos é uma adaptação satisfatória para uma grande parcela do público, priorizando mais o que fascina e o que instiga, do que necessariamente o que faz refletir. Não chego a dizer que é uma série tematicamente pobre, mas é quase, o que é curioso ao notarmos tantas ideias ao longo da temporada que discutem a condição humana. Ainda assim, penso que o saldo é positivo, porque temos uma narrativa engajante em seus mistérios, coesa em sua condução e de grande escopo em seus conceitos práticos de ficção científica, mesmo que talvez não seja o épico que imaginávamos com o conteúdo promocional. Vai ser interessante saber como a produção é conduzida a partir do desfecho que coloca insetos contra deuses.
O Problema dos 3 Corpos (3 Body Problem) – 1ª Temporada | EUA, 2024
Desenvolvimento: David Benioff, D. B. Weiss, Alexander Woo (baseado no livro homônimo de Cixin Liu)
Direção: Derek Tsang, Andrew Stanton, Minkie Spiro, Jeremy Podeswa
Roteiro: David Benioff, D. B. Weiss, Alexander Woo, Rose Cartwright, Madhuri Shekar
Elenco: Jovan Adepo, John Bradley, Rosalind Chao, Liam Cunningham, Eiza González, Jess Hong, Marlo Kelly, Alex Sharp, Sea Shimooka, Zine Tseng, Saamer Usmani, Benedict Wong, Jonathan Pryce
Duração: 08 episódios de aprox. 60 min. cada