- Veja aqui, as críticas das demais temporadas da série.
“Você quer transformar isso em uma questão de negro. Eu não sou negro. Eu sou O.J. Simpson”
O chamado “julgamento” do século não é apelidado assim à toa. Para quem não conhece os eventos do caso O.J. Simpson, acusado de assassinar sua ex-esposa Nicole Brown e o garçom Ronald Lye Goldman, e se depara com a dramatização produzida por Ryan Murphy, facilmente fica abismado e sem acreditar de que tudo ali narrado, em devidas proporções, aconteceu de verdade e foi exibido em rede nacional, sendo o veredito inclusive uma transmissão com mais audiência do que a chegada do homem à lua, tamanha a repercussão e comoção que ganhou o caso por sua imensa quantidade de assuntos delicados envolvidos.
O tema ganhou um novo auge em 2016, que também teve o expoente da excelente série documental O.J.: Made in America de Ezra Edelman, que traz toda uma recapitulação histórica contextualizada dos acontecimentos do tribunal, sob uma óptica biográfica crítica à figura de O.J. Simpson. Contudo, diferente dessa série que acabou se tornando um filme de quase oito horas de duração indicado ao Oscar, a proposta desta primeira temporada de American Crime Story não é ter um olhar crítico ao evento jurídico enquanto o emula, e sim emulá-lo em seu contexto de época, que inegavelmente dentro da inflamação política que causava, partia de uma premissa tão surreal que gerava entretenimento.
E o entretenimento de qualidade é aquele que diverte na mesma proporção que nos faz refletir, assim o caso O.J. cai como uma luva – trocadilhos à parte – na proposta antológica de trazer um crime real diferente por temporada e reproduzi-lo com liberdades ficcionais e estilísticas que o deixem divertido. Pode parecer uma escolha estrutural meio traíra com o conteúdo socialmente relevante, deixando-o superficial a uma diversão sensacionalista que pouco acrescentaria na leitura histórica do factual. Contudo, Murphy sabe o que quer com a proposta e aproveita essa liberdade assumida de estilização dentro do espaçamento temporal mais diluído da linguagem televisiva para, através de uma aproximação com seus personagens, comunicar diferentes perspectivas que acabam naturalmente atravessando o imediatismo com que são colocadas.
Numa primeira camada, existe sim a elaboração padrão na divisão dos times de advogados sob uma lógica bem maniqueísta de aparências. É o “Dream Team” de heróis de todas as raças se juntando na defesa da “vítima” por falsas acusações, e a “vaca” da Marcia Clark que vai fazer de tudo para que O.J. seja preso, sem escrúpulos ou relativizações. Parece um jogo do bem contra o mal mesmo, mas no meio o O.J. de Cuba Gooding Jr. carrega uma semente de ambiguidade que vai florescendo e invertendo papéis durante uma narrativa cada vez mais complexada em vias dramáticas. E essa complexidade é diretamente proporcional à construção dos personagens, que vão começando a se afetar com os efeitos da escala, que de contornos inicialmente chamativos vão ganhando ares tragicômicos reforçados pela organização dos eventos que culminaram na inocência do réu.
Nesse ponto o detalhismo cênico da estilização da direção torna os planos móveis, circulares e íntegros a uma rítmica pop de uma série maratonável, como artifício de prenúncio irônico à denúncia de um sistema judicial tão falho que foi imposto a uma mudança por uma falha. E digo falha porque a série deixa muito claro seu posicionamento de não acreditar que ele tenha sido inocente, e mesmo que essa posição venha do teor adaptativo do conto O Povo Contra O.J. Simpson – livro no qual a série se baseia –, não deixa de ser uma posição naturalmente crítica pelo contraste de sua forma tendenciosamente entretiva e que permanece assim com ou não a intenção de ser crítica. Mesmo já ciente dos fatos, a dúvida sobre a inocência ou não é crível, a ambiguidade do herói que se tornaria vilão é tão relevante quanto a hipocrisia do negro embranquecido virando símbolo de uma causa que nunca levantou, e o sensacionalismo pressionado em busca de um veredito são elementos fundamentais para a emulação conseguir sua imersão.
Além disso, as atuações surgem unitárias à proposta e estão calibradíssimas para potencializá-la à máxima potência. Mencionei Cuba Gooding Jr. como o mais fundamental, mas reforço que está longe de ser um bom ator, o que maximiza a escolha do casting para ele, que explora essas suas limitações e artificializações dramáticas em seu estilo de atuar para fornecer a ambiguidade necessária ao O.J. Simpson, que enquanto centro da narrativa fica exatamente no limiar do teatro com a intimidade de sua pessoa. John Travolta é outro que se transforma, a caricatura preguiçosa em que o ator estava mergulhado em seus últimos papéis se torna a base fundamental para fazer com que seu personagem naturalmente caricato se torne crível. Sarah Paulson é outro acerto incrível de casting, pois seu olhar facilmente transita entre o cínico e o inseguro que marca a graduação perfeita que sua personagem necessita como arco, que começa a ressignificar a proposta sensacionalista a um posicionamento mais firme da série. Os outros nomes do elenco estão igualmente excelentes, em especial Sterling K. Brown, David Schwimmer e Courtney B. Vance que ganham o maior destaque.
Trazendo a atmosfera noventista espetaculosa para enviesar a narrativa no mesmo clima eletrizante que foi acompanhar esse julgamento enquanto ocorria, American Crime Story dá um excelente pontapé inicial como antologia, acrescentando e incendiando ainda mais um evento histórico tão único que seria um desperdício não ter uma dramaturgia que o simulasse em algum momento.
O Povo Contra O.J. Simpson: American Crime Story – 1ª Temporada (The People v. O.J. Simpson | EUA, 2016)
Criação: Ryan Murphy
Diretores: Ryan Murphy, Anthony Hemingway, John Singleton
Roteiristas: Scott Alexander, Larry Karaszewski, D. V. DeVincentis, Joe Robert Cole, Maya Forbes, Wallace Wolodarsky (baseado no livro The Run of His Life: The People v. O.J. Simpson” por Jeffrey Toobin)
Elenco: Cuba Gooding Jr., Sarah Paulson, John Travolta, David Schwimmer, Courtney B. Vance, Bruce Greenwood, Selma Blair, Connie Britton, Jordana Brewster, Christian Clemmenson, Sterling K. Brown
Duração: 10 episódios – 50 minutos em média cada episódio.