O escritor britânico Tom Holt publicou o primeiro livro da série J.W. Wells & Co. em 2003. Dez anos depois, a produtora The Jim Henson Company juntamente com a Story Bridge Films juntaram-se para produzir um longa baseado no livro, projeto que só em 2020 começou realmente a sair do papel. O original é inspirado na ópera cômica O Feiticeiro (1877), da dupla W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, e a adaptação para o cinema até aborda um pouco dos elementos expostos no libreto, como a presença de elixires do amor, mas as semelhanças param por aí. O cerne da fita é o entrelace de uma fantasia relativamente politizada com um elemento já cristalizado na mentalidade do público cinéfilo desde Monstros S.A. (a passagem de um lugar para outro usando portas especiais), mais uma boa dose do velho argumento de que a humanidade só se desenvolveu porque teve ajuda de seres inteligentes de outras espécies — nesse caso, os goblins.
A história do filme, escrita pelo próprio Tom Holt em parceria com Leon Ford, é bastante simples: Paul Carpenter e Sophie Pettingel são estagiários recém-chegados à misteriosa empresa londrina J.W. Wells & Co., mas não sabem muito bem o que devem fazer no novo emprego. Uma coisa, porém, vai se tornando cada vez mais clara para eles: este não é um emprego convencional. Acontece que Paul (Patrick Gibson) e Sohie (Sophie Wilde) possuem alguns poderes ocultos, e vão desenvolvendo esses poderes à medida que passam os dias em seu novo trabalho. O enredo fala da “coincidência orquestrada” da magia na vida dos cidadãos comuns, e de como indivíduos sem muita perspectiva acabam descobrindo que possuem capacidades extraordinárias, podendo mudar a sua vida e a vida dos outros.
Não se trata de uma cópia de padrões mágicos adolescentes bem populares, como tem levantado algumas críticas negativas ao filme. Existem caminhos mágicos que são muitíssimo comuns, e estes são utilizados bem livremente aqui, sem muita regra e sem muita preocupação ao criar uma cartilha mágica de verdade. A intenção do diretor Jeffrey Walker é explorar as possibilidades de viagens pela tal “porta portátil” (que, não sem motivo, é representada por uma toalha) e as diferentes figuras que ocupam o escritório da J.W. Pensando nisso, entendemos também o enorme potencial perdido do longa. Faltam detalhes necessários sobre os integrantes da mesa diretora; falta um cerco de justificativas sólidas para que as atitudes iniciais de Paul não pareçam bobinhas e inconsequentes; e falta uma clareza maior, ainda no início do filme, sobre o trabalho realizado na empresa. Sim, eu entendo que este é o mistério pretendido pela direção, mas há níveis e níveis de mistério em uma narrativa fílmica. Quando falamos de uma informação essencial para ligação entre os personagens e a conexão do espectador com o ambiente recorrente na obra… o mistério não deve se prolongar muito — a não ser que todo o desenvolvimento do texto seja especificamente sobre o tal mistério, o que não é o caso aqui.
A simpatia de Patrick Gibson e Sophie Wilde suaviza um pouco essa parte da conexão com o público. Tanto a química crescente dos personagens quanto a lenta, mas crescente revelação de suas habilidades pessoais (e por tabela, a explanação de muita coisa que os ligam à misteriosa empresa) deixa o arco dos personagens interessante e torna perdoável alguns dos problemas de engajamento dramático do filme. Vejam como o carro-chefe do enredo — a presença de uma porta mágica –, demora uma eternidade para de fato aparecer, e existe apenas uma sequência de uso progressivo dela no filme. Depois da longa montagem com os pombinhos curtindo a vida em diversos lugares bonitos, voltamos a ter um uso verdadeiramente sério da porta apenas no final, durante o confronto de Paul com o mago Humphrey Wells, interpretado por um Christoph Waltz sem muita vontade de atuar. Esse mau aproveitamento das portas consegue ser parcialmente mascarado pela boa composição visual da parte mágica (a direção de arte do filme é linda!), sempre que essas portas aparecem. Só não vi muito sentido no rumo que o roteiro deu para a toalha/porta, mas talvez esse tenha sido o “brilhante gancho” que a produção encontrou para acenar à transformação da obra em uma franquia. Se este “descarte” da toalha como “resolução do problema” está no livro, e o filme só replica a situação, a coisa não funcionou nada bem no cinema, porque parece imbecilmente irresponsável.
Como é de se esperar em um filme de fantasia, a trilha sonora tem um papel marcante aqui, trazendo bons temas compostos por Benjamin Speed integrando a jornada de aprendizado dos protagonistas de maneira muito agradável. Gosto também do trabalho de Donald McAlpine na fotografia, mas seu exagero nas sombras e na escuridão durante as cenas finais cansam qualquer vista. Para o seu público-alvo, O Portal Secreto é um filme que certamente renderá uma boa recepção. A obra traz alguns interessantes momentos de tensão, simples, mas curioso uso de magia e presença de mistérios fantasiosos que deixam o espectador curioso para acompanhar o desenvolvimento do mistério. Claro que frustrações como a citação de um dragão filhote é ignorado pelo roteiro durante a obra inteira (há apenas um momento em que a criatura aparece) e o mau aproveitamento de ingredientes incríveis do roteiro deixarão os espectadores mais críticos irritados, mas a despeito de todas essas falhas, a sessão termina valendo a pena. Caso o filme tenha uma bilheteria interessante, não será nada espantoso que ganhe uma sequência. Livro-base para adaptar é o que não falta.
O Portal Secreto (The Portable Door) — Austrália, 2023
Direção: Jeffrey Walker
Roteiro: Tom Holt, Leon Ford
Elenco: Christoph Waltz, Patrick Gibson, Damon Herriman, Sophie Wilde, Sam Neill, Demi Harman, Rachel House, Miranda Otto, Chris Pang, Arka Das, Jessica De Gouw, Chris Story, Lin Yin, Jason Wilder, Paul Adams, Finn Treacy, Connor Treacy
Duração: 116 min.