Joaquim Pedro de Andrade, muito afinado com as ideias de construção de uma identidade do Brasil, tem o pontapé inicial da sua carreira como cineasta na direção de dois filmes de curta duração, a saber: O Mestre de Apipucos e O Poeta do Castelo, ambos de 1959. Seu projeto inicial, custeado pelo Instituto Nacional do Livro, tinha como intuito apresentar uma filmagem-apresentação de algumas personalidades essenciais da cultura brasileira. Gilberto Freyre e Manuel Bandeira correspondiam, assim, a duas esferas: este no campo poético, aquele no sociológico.
Este projeto de Joaquim Pedro, como logo se nota, não vai além desses dois filmes. Afilhado de Manuel Bandeira, o jovem diretor e entusiasta de Cinema teve acesso fácil ao interior da intimidade do poeta, filmando alguns passos de seu dia enquanto ouvimos, ao fundo, o próprio Bandeira recitando sua obra numa narração em off.
Numa padaria, Manuel Bandeira está com sua garrafa de leite nas mãos prestes a sair do estabelecimento. Em casa, prepara seu café da manhã e o degusta olhando a paisagem pela janela. Na cama, decide escrever algum poema, uma prosa, mas logo o telefone toca, relembrando-o de algum compromisso. Enquanto recita “Vou-me embora pra Pasárgada”, o poeta se veste lentamente para ir à banca de jornal e depois parte andando por uma longa avenida enquanto pensamentos borbulham.
O ritmo prosaico do curta-metragem oferece um trabalho de mimese em relação à própria obra de Manuel Bandeira, que é feita toda em tons de simplicidade e paixão. Não há pressa em nada: vagarosamente o pão é comido e no mesmo ritmo a paisagem é observada. Salta aos olhos um vagar contemplativo que é caro à sua poética, que enfoca pequenas partes do cotidiano mais trivial, singelo e simples. Esta obra de Joaquim Pedro tem essa preocupação em recusar uma exuberância fílmica em detrimento de longas tomadas, com extensos segundos com foco no detalhe que passaria batido: a panela no fogão, o leite fervendo, o pão no prato – além do momento quase ritualístico que é sentar-se para enfim apreciar a primeira refeição do dia diante da janela – tornam-se objetos da mais pura contemplação.
Menos da metade de um dia é apresentada através das câmeras e o acompanhamos não só por meio das ações postas em imagens, mas também, e sobretudo, da leitura dos poemas. O curta retira uma atmosfera mitológica que paira sobre grandes personalidades: não restam dúvidas aos que a partir desta filmagem conheceram a figura de Manuel Bandeira de que o é um poeta da simplicidade e do cotidiano.
O poeta do “castelo”, codinome que refere-se a uma determinada região central do Rio de Janeiro, revela a si mesmo diante a uma câmera intrusa, que o persegue incansavelmente nos momentos de encontro, desencontro e solidão. Um curta-metragem anti-epifânico e pertencente ao sublime cotidiano, a fita traz à luz a tímida imagem do veterano poeta numa espécie de gesto reflexivo contínuo, notabilizando, por meio dos detalhes compositivos da cena, a essência do seu homenageado. Neste filme que é apenas o prelúdio de sua filmografia, Joaquim Pedro de Andrade demonstra engenho, talento e sensibilidade diante de uma narrativa. E mesmo que trabalhe apenas o trivial, num texto que não requer muito, o cineasta desentranha um elevado conteúdo das ocasiões mais simplórias filmadas.
O Poeta do Castelo (Brasil, 1959)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Manuel Bandeira, Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: Manuel Bandeira
Duração: 10 min.