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Crítica | O Poderoso Chefão (Trilha Sonora Original)

Uma trilha, dois grandes temas.

por Luiz Santiago
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Qualquer pessoa que já tenha passado da adolescência e que tenha tido o mínimo de contato com cinema fora dos arrasa-quarteirões muito provavelmente já viu O Poderoso Chefão e, com isso, já teve contato com o trabalho do grande mestre italiano Nino Rota. The Godfather é um marco incontestável do cinema, adaptando de maneira irrepreensível a obra de Mario Puzo sobre a máfia, focando, mais especificamente, na família Corleone. À época de seu convite para compor a música do filme, Rota já tinha uma longa carreira no cinema, tendo começado a compor aos 22 anos, estreando no filme Trem Popular (1933), de Raffaello Matarazzo.

Embora tenha composto para diversas manifestações artísticas, sua obra musical mais conhecida é realmente a cinematográfica, com destaque especial para a longeva parceria que ele estabeleceu com o diretor Federico Fellini, para quem compôs as músicas de todos os seus filmes, de Abismo de um Sonho (1952) até Ensaio de Orquestra (1978), lançado um ano antes da morte do compositor. Ciente e admirador da amplitude de sentimentos que Rota conseguia colocar em suas trilhas sonoras, indo do mais dramático (Romeu & Julieta) e épico (Guerra e Paz) ao mais melancolicamente festivo (A Estrada da Vida) e comicidade caótica e circense (Oito e Meio), o diretor Francis Ford Coppola negociou a contratação do artista, que em outubro de 1971, viu uma versão do filme, juntamente com o diretor, e passou a trabalhar nos temas específicos para os protagonistas e para algumas situações-chave da trama.

O que muita gente não sabe é que a trilha sonora que O Poderoso Chefão não foi composta apenas por Nino Rota. É verdade que ele assina 10 das12 faixas que compõem a produção, mas as outras duas são de compositores diferentes, e eu gostaria de começar uma abordagem mais musicalmente específica falando delas. Ambas podem ser ouvidas na sequência do casamento de Connie, então podemos dizer que, em termos de unidade em um único momento da fita, a escolha de outros músicos, com outras ideias, pode fazer sentido. Mesmo que destoem muitíssimo de todo o restante da trilha e que não sejam tão marcantes quanto todo o restante, deve-se reconhecer que a essência da música italiana está presente nessas obras, de modo que pelo menos no aspecto de identidade étnico-musical, são boas peças.

I Have But One Heart, de Johnny Farrow e Marty Symes, é um lamento apaixonado típico das famosas “músicas de casamento” (é impressionante o nível de melancolia da maioria das canções escolhidas para esses eventos). Dela, a parte musicalmente mais criativa e bela — por quebrar com a base melódica enjoativa das estrofes — são os versos “My darling, until I saw you, I never felt this way / And nobody else before you, ever has heard me say“, onde temos uma mudança no tom, no ritmo e na performance do cantor — que no filme é Johnny Fontane (Al Martino). A atmosfera, nesse caso, é criada pelo acordeão e pelo bandolim, que são os instrumentos de maior destaque na faixa. Já a composição de Carmine Coppola (pai do diretor), Connie’s Wedding, busca ingredientes da música folclórica siciliana e estabelece dois temas simples, o primeiro muitíssimo curto e o segundo um pouquinho maior e mais enfeitado. Não gosto de nenhum dos dois, mas o uso deles no filme delineia a atmosfera festiva, ou seja, funciona no recorte para o qual foram compostos.

Considerando os apontamentos acima, talvez tenha ficado claro um dos motivos pelos quais eu não considero essa trilha uma obra-prima, porque aqui não estamos avaliando faixas separadas, não estamos avaliando este ou aquele tema primoroso e inesquecível. Estamos avaliando um corpo de obra musical inteiro. E do lado de Nino Rota é que temos as melhores coisas que essa produção nos traz, a começar pela grandiosa Main Title (The Godfather Waltz). Pensem por um momento na abertura de O Poderoso Chefão. Uma tela preta. Aparece “Paramount Pictures”, em cor branca. E então ouvimos o som inconfundível de um trompete, em linha melódica tristonha, sem percussão ou acompanhamento de qualquer outro instrumento. Logo o trompete finaliza a sua melodia e ouvimos a primeira linha do filme: “I believe in America“. Para quem conhece a Sinfonia nº1 de Sibelius, pode até notar alguma semelhança entre o início do Primeiro Movimento e o tema do Padrinho, mesmo que as peças estejam em tons diferentes e com leve diferença rítmica. Só levanto esse ponto porque ultimamente tem surgido debates sobre inspirações ou plágio de compositores, então é importante deixar isso às claras. Rota pode ou não ter se inspirado em Sibelius para começar o seu tema do Padrinho. Plágio não é. E se realmente houve inspiração, melhor ainda: artistas inspiram artistas, não há nada de errado nisso e nem diminui a obra de Rota. [Existem, aliás, inúmeras performances desta sinfonia do Youtube. Peguem uma delas e ouça os primeiros segundos. A semelhança está apenas nas primeiras 5 notas].

Essa faixa do Padrinho é de extrema importância para a trilha inteira, porque Rota trabalhou apenas com “tema e variações” aqui, criando diferentes arranjos, chamando diferentes instrumentos e até utilizando diferentes compassos para desenvolver o mesmo tema, e The Godfather Waltz é o principal deles. Por mais genial que seja a peça (e indiscutivelmente é!), fica difícil não cobrar algo que vá além do trabalho de variedade sonora e rítmica quase que unicamente feito com algo estampado já na abertura da trilha. No desenvolvimento, o compositor faz uma indicação relevante sobre importância deste tema, algo que, lá pela primeira hora do filme, acaba se confirmando: esta linha melódica, quando tocada no trompete, representa Vito; quando tocada no oboé, representa Michael; e, no clarinete, serve de contexto de poder, indicando o controle que passa nas mãos de diferentes gerações ao longo do tempo. O mesmo tema adiciona violoncelos e tem acompanhamento de violão em sua segunda metade, flertando com as muitas atmosferas que teríamos no filme (note, por exemplo, a maneira mais viva e com compasso mais rápido como a mesma valsa é tocada pela segunda vez, na parte dois do disco).

Uma mudança dramática muito forte é experimentada pelo compositor quando ele passa a escrever sobre cenas específicas e não sobre personagens. Ele tende a seguir padrões mais tradicionais (melódicos e harmônicos) nas composições para indivíduos. Já para acompanhar uma cena mais ampla ou representar todo um sentimento geral, ele costuma pensar mais amplamente, brincar com instrumentos, flertar com linhas que a gente já conhece. Veja o que ele faz em The Halls of Fear, por exemplo, trazendo pequenas nuances do tema do Padrinho e ligando-o diretamente a The Pickup, que por sua vez já começa com uma nova variação do famoso tema. Este é um caso inteligente e compensador de aproveitamento de um tema melódico ou harmônico (leitmotiv) e que, nessas duas faixas, ganham identidade própria. O piano amedrontador, os trompetes chorosos, o oboé meio noir e a percussão de The Halls of Fear são um exemplo. Já a orquestra, mais os arroubos jazzísticos e o grande peso do piano na parte dois de The Pickup tornam esta a mais misteriosa faixa de toda a trilha.

Sicilian Pastorale perde um pouco por ser curta demais. Os temas e variações vistos nas duas faixas citadas anteriormente aparecem brevemente aqui, com o oboé numa linha cheia de tensão e sentimento. Todavia, a promessa de crescimento do tema parece se dissipar muito rápido, com o compositor abreviando alguns pontos e trazendo baixos e violoncelos no final para elevar a tensão e encerrar o tema, que então nos leva para a mais bela peça de toda essa trilha, que é a faixa Love Theme from The Godfather (posteriormente liricizada por Larry Kusik, que criou a música Speak Softly, Love). Sobre este belíssimo tema de amor, eu devo dizer que entendo perfeitamente os espectadores que se sentem “traídos” por Nino Rota ou dizem que “sua vida foi uma mentira“. O motivo? Bem, eu vou deixar que vocês ouçam qual é. No vídeo abaixo, está um outro tema composto por Nino Rota, chamado Fortunella All’ospedale, que é parte do filme Fortunella, lançado em 1958 e dirigido por Eduardo De Filippo, com roteiro de Federico Fellini e com Giulietta Masina no elenco. Ouçam com atenção.

Bem, nem a pessoa com o pior ouvido melódico do mundo deixaria de sacar o que aconteceu: Rota aproveitou uma composição dele mesmo, feita em 1958, para O Poderoso Chefão. Este, aliás, foi o motivo pelo qual o filme, que tinha sido indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora, em 1973, teve sua indicação retirada, porque houve um comunicado à Academia e a óbvia constatação de que era um tema reaproveitado, indo contra as regras da categoria. Em termos de peso, significado e importância para O Padrinho, o tema perde algo? Definitivamente não! Aliás, esta é a melhor faixa de toda a trilha, para mim. O arranjo que Rota fez para o longa de 72 é muitíssimo sensível, com belo uso da harpa em toda a sua duração e de bandolins acompanhando a orquestra que vai crescendo e tornando-se mais suave à medida que se aproxima do fim, mostrando musicalmente os momentos de intensidade e de amenidade do amor.

Apollonia é uma faixa de revisão do tema anterior, com bandolins assumindo a voz musical na primeira parte e um leve acompanhamento conjunto depois. A única diferença em relação ao tema conhecido é o arranjo, que é bonito, mas quando a gente sai de uma situação de maravilhamento como foi a da outra faixa, fica difícil embarcar com igual intensidade em algo com a mesma premissa. Uma situação levemente parecida se dá com The Baptism, que particularmente acho macabra demais para o momento que precisa acompanhar, mas que tem uma marcante identidade religiosa (reafirma pelo órgão) e que se encontra com o tema do Padrinho em sua reta final (vejam a indicação de uma possível passagem de poder para a nova geração, como eu levantei mais acima). Já a faixa que adota um caminho diferente dos temas centrais, nessa segunda parte, é a The New Godfather, com toda aquela tensão gigantesca nos contrabaixos ao fim da faixa, parecendo que estão cavando um abismo para Michael entrar. É um tema que parece mostrar duas forças brigando. Uma linha melódica aguda e outra harmônica muito suave são, pouco a pouco, engolidas por algo mais sombrio vindo das cordas, que, a cabo, realmente ganham a batalha. É genial em seu sentido simbólico.

Com The Godfather Finale temos a sagração do que é a trilha de O Poderoso Chefão, já que o compositor faz uma amálgama de variações entre o tema do Padrinho e o tema do amor, os dois centrais de toda a trilha. É uma faixa inteligentíssima na fusão de temas, passeando por diferentes atmosferas, dando um pouco de esperança, trazendo um pouco de medo, de paixão e de sensação de finitude. Considerando apenas o aparato de arranjos e de variações do compositor no decorrer da trilha, esta é a que eu mais gosto, pois consegue visitar tudo aquilo que foi muito marcante, não se esquecendo de que está trazendo tudo pela última vez. É um último adeus, o fim de uma aventura cheia de momentos bem diferentes entre si (a alegria do casamento e a violência do tema do novo chefe da família, por exemplo). Em um entendimento simples — e eis aí a virada que todo bom filme de máfia sabe aproveitar muito bem — mostra a aventura da vida de qualquer pessoa. E aquilo que deveria ser o seu maior bem: a sua família.

O Poderoso Chefão (soundtrack)
Compositor:
Nino Rota, Carmine Coppola, Johnny Farrow, Marty Symes
País: Estados Unidos
Lançamento: 1972
Gravadora: Paramount
Estilo: Trilha sonora

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