- Há spoilers.
Como comentei na crítica da versão do diretor de O Poderoso Chefão: Parte III, a régua comparativa normalmente usada para diminuir o encerramento da trilogia de Francis Ford Coppola e Mario Puzo é injusta, beirando à infantilidade, já que a frase “não é tão bom quanto os outros dois filmes” não faz nenhum sentido quando os outros dois filmes não são outros dois filmes quaisquer, mas dois dos melhores longas já produzidos na História do Cinema. Além disso, considerando que Coppola está longe de ser um diretor consistente, tendo muito mais arroubos de brilhantismo em meio a uma série de obras que não exatamente despontam, esperar que o terceiro filme da saga O Poderoso Chefão – uma continuação tardia para usar termos atuais – chegasse ao nível dos anteriores é como exigir que alguém acertasse mais uma vez na loteria. E, mesmo que, de fato, não estejamos diante de um final do mesmo patamar das obras anteriores, o que o cineasta entrega é sensacional de sua própria maneira e um final digníssimo para o Michael Corleone de Al Pacino.
Depois do enorme sucesso de O Poderoso Chefão e O Poderoso Chefão: Parte II, produções que, juntamente com um punhado de outras, redefiniram, para o bem ou para o mal, a forma de se fazer filmes em Hollywood, era óbvio que a Paramount Pictures não descansaria enquanto não colocasse uma ou mais continuações na lata. E assim o estúdio prosseguiu já a partir da segunda metade dos anos 70, depois que Coppola recusou a oferta de encará-la por considerar a história completa e por querer perseguir os seus próprios sonhos – que nunca realmente chegaram à fruição – de seguir uma carreira independente, fora do sistema de estúdio. Com isso, Puzo foi contratado para escrever um novo roteiro, diversos diretores e outros roteiristas foram assuntados e pré-escalações foram feitas na medida em que esboços de ideias chegavam às mesas dos executivos do estúdio. No entanto, a própria Paramount, já em meados dos anos 80, reconheceu que retornar ao mundo da família Corleone sem Coppola era uma aposta arriscada demais e, com os retumbantes fracassos financeiros de O Fundo do Coração e Cotton Club, o diretor já não tinha mais como recusar uma oferta do estúdio, por mais irônico que isso possa ser e pronto, ele embarcou no projeto, precisando convencer Al Pacino, que também não queria mais nada a ver com Michael, a também comprar a ideia, algo que veio a muito custo, não só direto, com um cachê mais vultuoso, mas também com roteiros reescritos só para a aprovação do ator. Diane Keaton e Talia Shire também retornaram, estas sem muito esforço, mas Robert Duvall se recusou a receber menos do que Al Pacino recebera pelo longa anterior e Coppola teve que reescrever o roteiro novamente para eliminá-lo da história – matando o personagem no espaço temporal entre os longas – e substituindo-o, na prática, por B. J. Harrison, vivido por George Hamilton.
Como a história era necessariamente finalista e fatalista – o subtítulo da versão do diretor, A Morte de Michael Corleone já circulava desde a pré-produção do segundo filme e foi novamente discutido para o terceiro, com a Paramount recusando-se a usá-lo -, envelopando a saga da família Corleone com dor e tragédia, era essencial lidar tanto com a continuada tentativa de Michael de expiar seus pecados e de “limpar” os crimes do passado e seus negócios, como com a “nova geração” que chegava e é nela que os problemas do longa aparecem com mais evidência. Como herdeiro direto, o longa introduz Vincent Mancini (Andy Garcia) como filho ilegítimo de Sonny Corleone e, enquanto o ator consegue nos convencer como um “Corleone menor”, inicialmente perdido entre a sisudez do tio e seu jeito mais explosivo de ser, o roteiro de Coppola e Puzo comete o erro de demorar demais a introduzi-lo de verdade à narrativa central do filme, deixando-o flutuar solto enquanto as atenções permanecem em Michael. Sim, eu sei que Vincent aparece logo no começo do filme, na recepção que abre a obra, mas reparem que eu usei o termo “de verdade” quando falei do personagem, indicando que ele somente ingressa de maneira indelével na história bem mais tarde, o que custa ao filme seu ritmo e retira um pouco de seu impacto.
Se o herdeiro dos negócios de Michael tem problemas de passo narrativo, mas não de caracterização, o contrário acontece com os herdeiros de sangue do protagonista. Anthony Corleone (Franc D’Ambrosio) funciona como o desgosto inicial de Michael quando Kay (Keaton) informa seu ex-marido que ele decidira largar a faculdade de Direito para seguir carreira como cantor de ópera, o que, claro, tem como função narrativa principal servir de palco para o chocante e espetacular sequência nas escadarias do teatro na Sicília em que Michael solta seu berro mudo de dor profunda, talvez uma das mais memoráveis sequências do Cinema. Mas, voltando a Anthony, seu personagem é, com boa vontade, apenas secundário, um detalhe que permanece no pano de fundo do longa só emergindo nesses dois momentos que citei. Por outro lado, Mary Corleone (Sofia Coppola) é, muito claramente, a luz nos olhos do pai e toda sua razão para fazer o que faz. O uso da morte da personagem como forma de punir Michael chega a ser cruel, mas ao mesmo tempo perfeito, em um comentário cármico do morticínio patrocinado por Michael ao final do primeiro filme enquanto ele batizava seu sobrinho (o bebê, aliás, é Sofia Coppola) e ao assassinato de seu irmão Fredo no segundo (em que Sofia também aparece como uma menina imigrante). Michael, ao tentar purificar sua família, a destrói por dentro, levando-o a morrer sozinho, em um final definitivo mas que, para mim, é menos eficiente do que o da versão do diretor.
O problema de Mary Corleone é Sofia Coppola, claro, mais um exemplo de nepotismo de Coppola, que a escolheu no lugar de candidatas objetivamente muito melhores depois que Winona Ryder abandonou o filme em razão de seus compromissos com Minha Mãe é uma Sereia e por ter sofrido um ataque de nervos. Não, diferente de muitos por aí, eu não considero que ela “estrague” o filme, mas a então quase estreante atriz (além de suas aparições nos filmes anteriores da saga, ela foi escalada para viver papeis menores em nada menos do que outras seis obras do pai), que depois se mostraria como uma grande diretora, é muito claramente um destaque negativo no elenco, vivendo sua personagem sem emprestar-lhe personalidade e vivacidade e, pior ainda, sem conseguir estabelecer química com Al Pacino e Andy García, ou, sendo sincero, qualquer outro ator ou atriz no longa.
Mas essa conjunção de fatores negativos em O Poderoso Chefão: Parte III, apesar de relevantes, não conseguem, em minha visão, diminuir o impacto da obra como o encerramento da saga de Michael Corleone. Coppola, apesar dos pesares, costura maravilhosamente bem eventos reais relacionados com a Igreja Católica, mais especificamente a morte do Papa João Paulo I em 1978 e o escândalo bancário do começo dos anos 80, à história do protagonista que enxerga, ali, a oportunidade de finalmente alcançar o perdão que tanto almeja, mas sem perceber consciente que o que ele faz apenas empilha mais pecados na longa lista que precisa expiar. Michael, que começou como um inocente veterano de guerra fazendo de tudo para não se envolver nos negócios da família, não tendo escolha que não imiscuir-se neles para salvar seus entes queridos, mergulha de cabeça no mundo do crime ao expandir seus negócios e, agora, está tão próximo de tudo o que criou ao seu redor que ele é incapaz de separar o certo do errado, o belo do feio e o puro do pecaminoso. Al Pacino entrega outra atuação excelente para um papel que inacreditavelmente nunca foi reconhecido pelas maiores premiações da indústria, mostrando algo que poucas vezes temos oportunidade de ver no Cinema, que é a real evolução de um personagem por meio não só de roteiros cuidadosos, mas também e principalmente de performances inigualáveis que também se desenvolvem com a idade e maturidade do intérprete.
O Poderoso Chefão: Parte III é uma daquelas raras continuações tardias que têm o que realmente contar e Francis Ford Coppola e equipe entregam um final digno e lógico para o inesquecível Michael Corleone sem que seu personagem seja traído – narrativamente, claro – por sequer um segundo. A decisão da Paramount de fazer das tripas coração para trazer o cineasta a um projeto que era inevitável foi mais do que acertada, pois só ele – e Al Pacino, logicamente – poderia saber como levar o Padrinho a uma conclusão à altura do que foi construído em duas obras-primas do Cinema. Se a terceira parte é inferior ao que veio antes, isso é porque o que veio antes está em outro patamar comparativo, lá no panteão cinematográfico.
O Poderoso Chefão: Parte III (The Godfather: Part III – EUA, 1990)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Mario Puzo, Francis Ford Coppola
Elenco: Al Pacino, Diane Keaton, Andy Garcia, Talia Shire, Eli Wallach, Joe Mantegna, George Hamilton, Bridget Fonda, Sofia Coppola, Raf Vallone, Franc D’Ambrosio, Helmut Berger, Don Novello, Richard Bright, Donal Donnelly
Duração: 162 min.