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Crítica | O Poderoso Chefão: Parte II

Uma continuação improvavelmente maravilhosa.

por Ritter Fan
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  • spoilers.

Continuações cinematográficas existem desde que o Cinema existe, com a primeira delas, segundo consenso entre especialistas, tendo sido The Fall of a Nation (A Queda de uma Nação em tradução direta), de 1916, hoje um filme perdido que era sequência do controverso O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith. Durante as décadas seguintes, diversas outras continuações foram produzidas e lançadas, mas quase que completamente esquecidas. Franquias cinematográficas mesmo, fora dos serials, como hoje as conhecemos, eram ainda mais raras, ganhando relativamente mais destaque em Hollywood primeiro dentro do universo dos Monstros da Universal e, depois, com filmes do gênero faroeste e, mais adiante, a partir do começo da década de 60, com 007, mas ganhando mais capilaridade a partir do começo da década seguinte, com Planeta dos Macacos, Shaft e outros. O Poderoso Chefão foi, talvez, a primeira obra de prestígio a ganhar uma continuação igualmente prestigiosa, ao mesmo tempo mostrando que sequências não são apenas subprodutos, o que é ótimo, e que há muito dinheiro no reaproveitamento de propriedades intelectuais, o que é terrível.

Se a conturbadíssima produção do longa de 1972 foi uma espécie de conjunção astral com alinhamento de planetas quase que completamente inacreditável por ter, contra todas as probabilidades, resultado no que resultou, o segundo filme, produzido a toque de caixa em meros dois anos enquanto Francis Ford Coppola também trabalhava no sensacional A Conversação, também lançado em 1974, simplesmente não tinha como alcançar o mesmo nível, sequer chegar próximo. No entanto, comprovando que dois raios podem cair exatamente no mesmo lugar, O Poderoso Chefão – Parte II chegou aos cinemas americanos no final daquele ano não só cumprindo a promessa de ser tão bom quanto o original, como, para algumas pessoas, sendo ainda melhor (e, se me perguntarem, eu não consigo me decidir entre os dois, ainda que eu normalmente cambe para o primeiro). E essa qualidade refletiu-se nas premiações, com ambos os filmes tendo concorrido a nove estatuetas do Oscar, o primeiro levando três e o segundo seis, sendo que os dois a de Melhor Filme, fazendo da franquia a única em que o original e a continuação levaram o prêmio máximo e a única em que dois atores levaram o Oscar de Melhor Ator – principal no primeiro e coadjuvante no segundo – por dois papeis exatamente iguais (e não duas versões diferentes e desconectadas do mesmo personagem) e apenas uma de duas franquias (a outra é O Senhor dos Aneis que conta, também, com a única outra continuação a levar Melhor Filme) que tiveram seus três filmes concorrendo à referida categoria.

E, para mim, O Poderoso Chefão e O Poderoso Chefão – Parte II foram é pouco prestigiados pela Academia, com Al Pacino sendo esnobado duas vezes seguidas (quatro se considerarmos que ele concorreu quatro anos seguidos à categoria de Melhor Ator e Ator Coadjuvante entre 1972 e 1976!), só finalmente sendo laureado em 1993, com Perfume de Mulher. Mas, como sempre digo, prêmios são indicativos muito falhos da qualidade de uma obra e O Poderoso Chefão – Parte II não precisa de “medalhas” para ele ser o que é. O filme fica de pé por seus próprios méritos e Coppola, na direção, mostra que a insegurança que demonstrou no set anos antes que chegou a preocupar até mesmo outros membros mais experientes da equipe era parte de seu processo e, com seu retorno à frente da produção desta vez não só como diretor, mas também produtor e, com isso, com muito mais liberdade criativa – vamos combinar que fica mais fácil dar carta branca a alguém depois que essa pessoa está estabelecida, ainda que carta branca sempre seja algo perigoso – e muito menos interferência do estúdio, ele pode seguir seu caminho com muito mais segurança e tranquilidade.

No entanto, se a produção do segundo longa não foi nem de longe tão complicada como a do primeiro, ela teve uma generosa parcela de problemas que começaram com Al Pacino não gostando muito da ideia de retornar ao papel de Michael Corleone, o que levou Coppola a reescrever o roteiro que havia originalmente sido apresentado ao ator de forma a mostrar seu comprometimento com o projeto. Aliás, reescrever o roteiro foi padrão nessa produção como na anterior, já que tudo começou com algo que seria muito mais próximo ao que acabaria sendo O Poderoso Chefão – Parte III, de 1990, e a versão do diretor de 2020, com um dos primeiros rascunhos inclusive contendo o subtítulo A Morte de Michael Corleone. O Poderoso Chefão – Parte II só se tornou “dois em um” em momento posterior de conversas entre Coppola e Mario Puzo e de Coppola com os engravatados da produção, levando à criação de um texto que era ao mesmo tempo continuação e prelúdio, ao mesmo tempo o começo da queda de Michael Corleone e a história da ascensão de Don Vito Corleone em narrativas paralelas que jamais convergem, ainda que uma “comente” a outra, claro.

Essa ousadia narrativa, diria, é o que realmente justifica a existência da continuação, o que efetivamente a faz ser digna das láureas que recebeu. Não que “apenas” continuar a história de Michael Corleone não pudesse resultar em uma obra-prima, mas é a paralelização de dois momentos temporais diferentes em movimentos em direções opostas que faz da sequência algo especial, que chama atenção do espectador pela novidade temática e variedade visual. E isso fica evidente já nos momentos iniciais em que há a transição de um Michael Corleone com semblante sério e entristecido tendo sua mão beijada no escritório que fora de seu pai para o cortejo fúnebre de seu avô nos arredores de Corleone, na Sicília, em 1901, o assassinato de seu tio que tenta se vingar do chefão local e, em seguida, de sua avó que se sacrifica para salvar seu pai, Vito Andolini, uma criança de nove anos (vivida por Oreste Baldini), e a fuga dele para o Novo Mundo e uma nova vida. Trata-se de um começo de filme tão inesperado quanto imediatamente cativante, que metaforicamente afirma que a Família Corleone começou pelo medo e pela violência e pelo medo e violência viveu as décadas seguintes nos Estados Unidos, lugar que abraçou e, diria mais, estimulou esse estilo de vida, algo que o Vito na versão Robert De Niro, aprendendo a se virar na ilegalidade e deixando sua ambição levá-lo, aprofunda a cada retorno ao passado, com a direção de arte e a direção de fotografia nesse passado transferindo visualmente o abandono e a dificuldade da vida na Sicília para Nova York, quase que literalmente nos dizendo que, no final das contas, os Velho e Novo Mundos não são assim tão diferentes.

No presente, em 1958, a primeira sequência para além do close-up no rosto de Michael é, como no filme original, uma festa para comemorar a Primeira Comunhão de Anthony Vito Corleone (James Gounaris), filho do Poderoso Chefão, em que aprendemos tudo o que precisamos aprender sobre o intervalo temporal entre filmes. Michael está sedimentado em sua posição e em sua visão de expandir os negócios para o oeste – a casa que sedia a festa fica às margens do Lago Tahoe, entre Nevada e Califórnia, não mais Nova York -, com políticos influentes e a polícia local devidamente em seu bolso, mas com uma inextricável nuvem negra pairando sobre tudo e sobre todos, nuvem essa que começa em Michael, mas que é refletida em sua irmã Connie (Talia Shire), em sua esposa Kay (Diane Keaton) e em seu irmão Fredo (John Cazale) e que deságua no atentado à vida de Michael que se torna o estopim narrativo para tudo o que ele faz a partir desse ponto. Enquanto a festa de casamento de Connie era genuinamente alegre, ainda que com a mesma função de estabelecer tudo o que o filme original era, a festa no lago é eminentemente melancólica, uma indicação clara de que a escolha de Michael – foi mesmo uma escolha? – em seguir os passos de seu pai, por mais financeiramente bem-sucedida que tenha sido, somente confirma os temores de sua própria versão mais inocente e idealista, ainda de uniforme de soldado.

A estrutura familiar celebrada no primeiro filme é corrompida no segundo em um comentário muito claro sobre o estado das coisas na época da produção, com Coppola muito claramente dizendo ao público que os valores tão elogiados e perfeitamente aplicáveis às famílias “comuns” americanas cobram seu preço, preço esse composto por ambição, por medo, por uma luta por poder que não tem fim. Michael tem consciência de tudo ao seu redor, pois ele é tão inteligente quanto seu pai, mas o jogo que ele precisa jogar acaba sendo mais cru, ainda que não mais cruel, já que nada supera Vito prometendo aos demais chefões que ele jamais vingaria a morte de seu Sonny tendo em mente um plano de longo prazo em que seu filho mais novo faria isso por ele. Michael não tem o tempo a seu favor, pois ele precisa descobrir quem é o traidor, quem ordenou o atentado contra ele e isso o leva à Havana, Cuba, às vésperas da Revolução Cubana, em que precisa lidar com Hyman Roth (Lee Strasberg) parceiro de seu pai e dele em negócios escusos que, claro, acaba se revelando estar por trás de tudo, tendo usado Fredo para atacá-lo. O beijo da morte é excruciante e uma cena sensacional em sua intensidade, tão sensacional que Pacino merecia um Oscar só por esses segundos.

E, com o começo no presente do segundo filme refletindo o começo no primeiro, o final ganha o mesmo sabor na direção oposta. A montagem cruzada de Michael batizando seu sobrinho e “renunciando” ao diabo enquanto seus inimigos são liquidados, tem, por mais que queiramos dizer que não, um viés de vitória construído para o espectador vibrar com assassinatos, vibrar por um homem que comandou um plano maquiavélico de vingança que durou anos para ser executado. Na continuação, Michael faz espiritualmente o mesmo, mas sua alma já se fora e tudo o que vemos são sombras, cinzas e terra arrasada, com o ponto alto (ou baixo, dependendo do ponto de vista) sendo a belíssima e ao mesmo tempo profundamente perturbadora execução de Fredo no lago onde esse capítulo da história começou. Se alguém tinha alguma dúvida de que o Michael Corleone da sequência de casamento de Connie não mais existia, agora essa conclusão é inescapável e inevitável. Michael tornou-se um monstro que nem mesmo o espectador com mais boa vontade pode afirmar o contrário, enquanto que, ironicamente, seu pai, no passado, finalmente vingando-se da morte de sua família, assassina friamente um velhinho indefeso e nós, mais uma vez, aplaudimos a violência. Tudo é uma questão de perspectiva sempre e Coppola manipula nossa perspectiva como um marionetista manipula seus bonecos e não somos sequer capazes de perceber que não passamos de massa de modelar nas mãos de um mestre.

O Poderoso Chefão – Parte II  é a continuação pela qual todas as continuações (e prelúdios) deveriam pautar-se e é enervante notar como tão poucas assim o fazem. Em mais uma produção que simplesmente não tinha como dar certo da forma como deu certo, Francis Ford Coppola faz pura magia cinematográfica e nos entrega uma obra-prima (duas em uma, não podemos esquecer!) que não sabíamos que precisávamos e que, como o longa original, para sempre mudaria a forma de se fazer Cinema.

O Poderoso Chefão: Parte II (The Godfather: Part II – EUA, 1974)
Direção:
Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, Mario Puzo
Elenco: Al Pacino, Robert Duvall, Diane Keaton, Robert De Niro, Oreste Baldini, John Cazale, Talia Shire, Lee Strasberg, Michael V. Gazzo, G. D. Spradlin, Richard Bright, Gastone Moschin, Tom Rosqui, Bruno Kirby, Frank Sivero, Morgana King, Francesca De Sapio, Marianna Hill, Leopoldo Trieste, Dominic Chianese, Amerigo Tot, Troy Donahue, Joe Spinell. Abe Vigoda, John Aprea, Harry Dean Stanton, Carmine Caridi, Danny Aiello, James Caan, Gianni Russo, Roger Corman, James Gounaris
Duração: 202 min.

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